É inegável que, nos últimos anos, importantes instrumentos foram postos à disposição da sociedade para efetivamente controlar os atos da administração pública, e dos particulares que têm repercussão na coletividade.
Entre esses instrumentos, surgem as denominadas audiências públicas. Elas estão previstas na legislação ambiental, na Lei de Licitações, na Lei de Responsabilidade Fiscal e, mais recentemente, no Estatuto da Cidade.
Vejamos como esse instrumento de participação da sociedade se apresenta nos supramencionadas diplomas legais.
1) LC 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal
Art. 9.º § 4.º Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida no § 1º do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas Legislativas estaduais e municipais.
Art. 48 – Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos.
2) Lei 10.257/2001 –
Estatuto da Cidade
Art. 40. § 4.º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
II – debates, audiências e consultas públicas;
Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4″ desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.
Art. 2.º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população.
3) Legislação Ambiental
RESOLUÇÃO CONAMA N.º 001, de 23 de janeiro de 1986
Art. 11 § 2.º – Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental e apresentação do Rima, o órgão estadual competente ou o Ibama ou, quando couber o município, determinará o prazo para recebimento dos comentários a serem feitos pelos órgãos públicos e demais interessados e, sempre que julgar necessário, promoverá a realização de audiência pública para informação sobre o projeto e seus impactos ambientais e discussão do Rima.
RESOLUÇÃO/Conama/N.º 009, de 03 de dezembro de 1987
Art. 1.º – A Audiência Pública referida na Resolução/Conama/N.º 001/86, tem por finalidade expor aos interessados o conteúdo do produto em análise e do seu referido Rima, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito.
Art. 2.º – Sempre que julgar necessário, ou quando for solicitado por entidade civil, pelo Ministério Público, ou por 50 (cinqüenta) ou mais cidadãos, o Órgão de Meio Ambiente promoverá a realização de audiência pública.
4) Lei 8666/93. –
Lei de Licitações
Art. 39. Sempre que o valor estimado para uma licitação ou para um conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas for superior a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea “c” desta Lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoriamente, com uma audiência pública concedida pela autoridade responsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis da data prevista para a publicação do edital, e divulgada, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis de sua realização, pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação, à qual terão acesso e direito a todas as informações pertinentes e a se manifestar todos os interessados.
A previsão das retrocitadas audiências tem seu fundamento jurídico no princípio da publicidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988 e em constituições anteriores.
A forma como esse instrumento de participação social se apresenta nas diferentes normas, aparentemente, dá concretude ao já mencionado princípio da publicidade aplicável à administração pública. Todavia, é preciso que analisemos como efetivamente as audiências têm ocorrido e se elas têm cumprido a função para a qual foram criadas.
Quanto às audiências previstas na Legislação Ambiental, o que se constata é que elas são realizadas para cumprir a formalidade legal e, em muitas delas, a sociedade freqüenta como espectador ou, no máximo, como figurante de um grande espetáculo. Como assistentes, observam a exibição dos pontos positivos do empreendimento e as “inúmeras vantagens” para a sociedade. Não são raros os casos em que empresas poluidoras se convertem em fomentadoras do desenvolvimento social com significativas compensações para a sociedade local, após uma brilhante exposição de técnicos que usam linguagem inacessível e fantasiosa.
As audiências ambientais apenas tomam rumo diferente quando há organizações de ambientalistas ou outros setores que intervêm com maturidade, inserção social e competência técnica.
As audiências públicas previstas na Lei de Licitações são ainda mais frágeis e, quando realizadas, atingem um público diminuto que não raro se restringe aos licitantes interessados. Não há uma tradição de controle social rigoroso sobre os procedimentos licitatórios, tampouco, a imensa maioria da sociedade tem conhecimento da existência desse instrumento de controle sobre a contratação por parte da Administração Pública.
A Lei Complementar 101/2000 ampliou as possibilidades de audiências ao torná-la obrigatória para a avaliação de metas fiscais, elaboração da Lei Orçamentária, Plano Plurianual e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Se realizadas com a amplitude e significado que a Lei previu estaríamos muito próximos de uma modalidade de democracia direta no que tange às finanças públicas.
Ocorre que, numerosos administradores públicos se empenharam mais no desenvolvimento de instrumentos para se defender dos efeitos das audiências do que para aperfeiçoá-las assegurando a participação popular.
Dois anos após a sanção da LRF é preciso que sejamos muito críticos quando à sua aplicabilidade, pois os administradores foram muito eficientes na geração de superávit primário, no pagamento das dívidas e na redução de gastos com pessoal. Por outro lado, restringiram a participação popular à assistência de demorados, complexos e inacessíveis relatórios da administração pública. Os salutares debates deixaram de existir até mesmo com os vereadores que compõem as comissões de economia do Legislativo.
As audiências, em regra, não estão sujeitas a um regulamento que seja de todos conhecido, não ocorre em horários e locais acessíveis a qualquer munícipe; não se sabe o que fazer com eventuais divergências que surjam no decorrer da audiência.
Em síntese, essas também têm sido realizadas para cumprir uma formalidade e são mais um “show” do que um fórum de deliberação quanto às contas públicas e as políticas a serem realizadas pelo ente público.
Urge os Legislativos e Executivos regulamentarem a realização das audiências mencionadas na Lei Complementar 101, sob o risco dessas caírem no esquecimento e passarem a ser realizadas no gabinete do prefeito ou do presidente da Câmara.
O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, dedicou todo um capítulo para o tema da gestão democrática da cidade. Entre os instrumentos utilizáveis nessa forma de gestão estão as audiências públicas. Elas devem ser realizadas nas defini ções das políticas públicas municipais, na definição do plano diretor, no processo de elaboração e aprovação da Lei Orçamentária e seus instrumentos. É nessas audiências públicas, por exemplo, que poderão ser definidos os critérios que aferirão a função social da propriedade urbana e da própria cidade, assim como definirão pela realização ou não de obra ou outra intervenção urbana.
A realização das audiências públicas, nos seus diferentes objetivos e finalidades, deve ser considerado como requisito de legalidade dos atos administrativos e, portanto, a sua não realização ou realização de forma defeituosa e viciada enseja a nulidade dos atos praticados.
As audiências públicas não podem continuar sendo uma forma desvirtuada de participação popular, onde a sociedade participa como mera espectadora.
É urgente a regulamentação das audiências públicas, sobretudo as formas mais recentes, quais sejam aquelas previstas na lei de Responsabilidade Fiscal e Estatuto da Cidade. Na regulamentação devem ser estabelecidas regras claras quanto ao tempo de duração, papel dos administrados e administradores, formas de registro e solução das eventuais divergências ocorridas na audiência, divulgação prévia dos documentos que serão apresentados.
A esses instrumentos tão importantes para a coletividade e exercício pleno da cidadania não pode ser dado um tratamento hipócrita. A tarefa de assegurar o verdadeiro sentido desses instrumentos é de toda a sociedade e dos administradores que querem tratar como público aquilo que por sua natureza público é.
Ludimar Rafanhim é bacharel em Direito; bacharel em Filosofia com especialização em História e Cidade. E-mail: ludilet@terra.com.br