Gato escaldado

As relações do Brasil com a Bolívia de Evo Morales nunca foram das melhores. Isso, apesar da euforia de certos setores das esquerdas brasileiras, que viram na eleição de Morales no país vizinho como um importante passo para a ?libertação? dos povos oprimidos pelo imperialismo norte-americano, pensamento gravado nas mentes por repetidos e insistentes ?slogans?. Afinal de contas, era mais um chefe de Estado de esquerda a chegar ao poder no continente e o mesmo acontecera no Brasil, na Venezuela, no Peru e no Equador, para não falar na Argentina, onde Kirchner realizou um dos anelados sonhos das esquerdas, a declaração de moratória.

O governo de Lula, que se diz de esquerda, embora os fatos e atos o desmintam, aplaudiu a ascensão do líder cocaleiro. E viu-se em papos-de-aranha quando Morales começou a ocupar com tropas militares as refinarias da Petrobras na Bolívia, revolver contratos de fornecimento, alterando o preço para mais e desapropriando sem a oferta de indenizações em valores justos bens pertencentes à Petrobras. Como a Petrobras é nossa, propriedade dos brasileiros, nossa nação foi surrupiada.

Por mais que as coisas tenham se acomodado, não de acordo com o que queríamos e acreditávamos ser nosso direito, o Brasil procurou sempre evitar um confronto direto, mesmo que de palavras e no âmbito da diplomacia. Nosso recolhimento e consentimento foi tão grande que as autoridades bolivianas chegaram a pôr o bedelho em assuntos internos do nosso País, como a construção de usinas hidrelétricas no Rio Madeira.

Nesse meio-tempo, Hugo Chávez, o ditador venezuelano, aproximou-se de Morales e começou um movimento de cooptação daquele governante e de outros da América do Sul, tanto para se curvarem à sua pretendida liderança no continente, quanto para se voltarem contra a investida brasileira em favor dos combustíveis resultantes de biomassa. Acusaram-nos de ter um programa que prejudica a produção de alimentos para privilegiar a de combustíveis não fósseis, tese que temos desmentido, mas nem sempre convencido.

Estes e outros episódios envolvendo as relações Brasil-Bolívia talvez não aconselhem nenhuma espécie de rompimento, pois afinal de contas sempre há um enorme campo para ser trilhado pela diplomacia. No mais, remanescem interesses econômicos palpáveis, como a necessidade do Brasil de se abastecer de gás natural que a Bolívia produz e sempre foi a nossa principal fonte. E a Bolívia, de sua parte, precisa dos investimentos brasileiros, inclusive e principalmente no campo da energia.

Mas, gato escaldado tem medo de água fria e nós deveríamos tratar de qualquer assunto com a Bolívia de Evo Morales de olho no passado recente, quando nossos bens e direitos não foram respeitados, houve atos arbitrários contra propriedades da Petrobras e nossos interesses passaram a ser decididos de forma discricionária por Evo Morales. Decisões tomadas, aliás, com base naqueles mesmos ?slogans? de independência, nacionalismo e socialismo que os nossos atuais dirigentes gritaram em coro, durante décadas, nos comícios, passeatas e até nas barricadas. Feitiço que virou contra o feiticeiro.

Agora, a Petrobras confirma que pode operar mais um campo de produção de gás na Bolívia. O gerente-executivo para o Cone Sul da empresa, Décio Oddone, disse que a estatal está discutindo com a francesa Total o possível compartilhamento da produção do campo de Itaú. Seria uma associação com a empresa francesa, que já está na Bolívia e as autoridades brasileiras adiantam que não haveria a compra dos investimentos da Total. Apenas a complementação.

Pode ser que as necessidades de gás do Brasil recomendem a operação. Pode ser que o governo boliviano reze de pés juntos que vai respeitar os nossos interesses e direitos. Mas será que é de se confiar em quem, há tão pouco tempo, tomou na marra o que sempre acreditamos que era nosso e, de retorno, nos pagou quanto quis e muito abaixo do que seria justo?

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