No ordenamento jurídico-penal brasileiro nunca nosso legislador (até 1984) havia se posicionado (explicitamente) sobre as finalidades (ou funções) da pena. No âmbito dogmático (teórico), com certa tradição, (quase) sempre nossos doutrinadores mantiveram-se filiados às teorias ecléticas (ou mistas ou de união ou unitárias), que unificam as idéias de retribuição (ao mal do crime o mal da pena) e prevenção, tanto geral (ameaça a todos para que não venham a delinqüir) como especial (evitar que o criminoso volte a delinqüir).
Esse posicionamento doutrinário acabou tendo influência no Código Penal brasileiro vigente que parte – como não podia ser de outro modo – de um elementar retribucionismo, ao estabelecer como critério punitivo reitor do sistema a imposição da pena justa e merecida, isto é, da pena proporcional à gravidade objetiva do fato e à culpabilidade do seu autor.
Sem esquecer, desde logo, que a proporcionalidade da reação ao delito acomoda-se, também, às exigências preventivo-gerais (a pena mais eficaz é, precisamente, a pena proporcionada): justiça e proporção constituem os pilares de uma concepção retributiva.
De qualquer forma, não é válida a conclusão de que nosso Código siga o sistema retributivo puro. Admite-o como ponto de partida, mas não se orienta pelo retribucionismo inflexível (ou kantiano). O juiz conta com relativa maleabilidade no momento da fixação da pena (CP, art. 59) (embora flexibilidade ou discricionariedade não signifique arbitrariedade) e numerosas instituições desmentem as exigências lógicas derivadas das teorias absolutas ou retribucionistas. Isso significa, por conseguinte, que a resposta penal nem sempre pretende ajustar-se exclusivamente à gravidade objetiva do fato e à culpabilidade do seu autor.
A Constituição brasileira de 1988 não se posicionou expressamente sobre o tema. Mas como contemplou as vigas mestras de um modelo de Estado que se caracteriza por ser constituicional e democrático de Direito, não há dúvida que dos seus princípios, regras e valores (justiça, liberdade, segurança, dignidade da pessoa etc.) podemos inferir importantes limites à intervenção penal.
De modo algum, por exemplo, pode o autor de um crime ser tomado como ?bode expiatório?, como ?paradigma? (?exemplo?) para a sociedade, como meio para se alcançar a finalidade de prevenção geral.
O artigo 59 do Código assumiu expressamente um duplo sentido para a pena: retribuição e prevenção. Diz textualmente: ?O juiz, atendendo à culpabilidade …, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime: as penas aplicáveis dentre as cominadas …?.
O artigo 1.º da lei de execução penal, por sua vez, sublinha que ?A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado?.
No momento da sentença, como se vê, a pena deve ser aplicada com o sentido retributivo e preventivo. No momento da execução, firmou-se a orientação primordial da integração social (prevenção especial). De qualquer modo, o sentido da pena em um determinado momento (da sentença) não se exclui quando ela passa para a fase seguinte (executiva).
Em nossa opinião, de tudo quanto foi exposto infere-se que, mutatis mutandis, é perfeitamente adequada ao ordenamento jurídico brasileiro a fórmula (tripartida) oferecida por Roxin (Derecho penal: PG, trad. de Luzón Peña et alii, Madrid: Civitas, 1997, p. 78 e ss.), com a conseguinte atribuição à pena de fins distintos segundo o momento ou fase de que se trate:
(a) no momento da cominação legal abstrata a pena tem finalidade preventiva geral (seja negativa: intimidação; seja positiva: definição ou chamada de atenção para a relevância do bem jurídico protegido);
(b) na fase da aplicação judicial a pena tem finalidade preventiva geral (confirmação da seriedade da ameaça abstrata, assim como da importância do bem jurídico violado), repressiva (reprovação do mal do crime, fundada e limitada pela culpabilidade) e preventiva especial (atenuação do rigor repressivo para privilegiar institutos ressocializadores alternativos: penas substitutivas, sursis etc.) e
(c) na última etapa, na da execução, prepondera (formalmente) a finalidade de prevenção especial positiva (proporcionar condições para a ressocialização ou para a realização de uma processo de diálogo – Dotti -), porém, na prática, o que se cumpre é a função preventiva negativa da inocuização (mero enclausuramento, sem nenhum tipo de assistência ao recluso, sem a oferta das condições propícias à sua reinserção social).
A pena de prisão, na atualidade, longe está de cumprir sua missão (ou finalidade) ressocializadora. Aliás, não tem cumprido bem nem sequer a função inocuizadora (isolamento), visto que, com freqüência, há fugas no nosso sistema. A pena de prisão no nosso país hoje é cumprida de maneira totalmente inconstitucional (é desumana, cruel e torturante). Os presídios não aprensentam sequer condições mínimas para ressocializar alguém. Ao contrário, dessocializam, produzindo efeitos devastadores na personalidade da pessoa. Presídios superlotados, vida subumana etc. Essa é a realidade. Pouco ou nada é feito para se cumprir o disposto no art. 1.º da LEP (implantação de condições propícias à integração social do preso).
O forte selo intimidatório, de outro lado, típico das concepções preventivo-gerais, traduz-se no desmedido rigor penal que as últimas reformas introduziram no nosso sistema. Exemplo paradigmático disso são as várias leis dos crimes hediondos (Lei 8.072/90, 8.930/94 e 9.695/98).
As reformas penais nos últimos anos, em suma, esquecendo-se do relativo equilíbrio estabelecido fundamentalmente nas alterações legislativas de 1984 (ocasião em que foi modificado o Código Penal – Parte Geral – e a aprovada a Lei de Execução Penal) vem reforçando, por razões utilitárias e de oportunidade, o pensamento prevencionista (ora no sentido da prevenção especial – com a aprovação das penas restritivas, v.g. -, mas sobretudo no sentido da prevenção geral – constantes aumentos de pena e agravamento da execução, que se deram, por exemplo, com as várias leis dos crimes hediondos, que contam com enorme força apelativa e simbólica, como se a cominação abstrata fosse, por si só, solução para o grave problema da criminalidade no nosso país).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)