Não são poucos os julgados que admitem que a fuga do agente constitui motivo suficiente para a decretação de uma prisão preventiva. Ou seja: a fuga do acusado acaba militando em seu desfavor ?e, por si só, justifica o decreto prisional? (STJ, 5.ª Turma, HC 34.149/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 18/10/04; RHC 15.870/SP, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 2/8/04; HC 31.275/GO, rel. Min. Felix Fischer, DJ 2/8/04 e HC 33.380/CE, rel. Min. José Arnaldo, DJ 30/8/04). Inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a sua 2.ª Turma, embora com vacilações diante das peculiaridades do caso concreto, tem reafirmado a mesma idéia (HC 81.468-9).
Mas para que a fuga constitua fundamento para a prisão preventiva, duas exigências são impostergáveis: (a) que haja inequívoca comprovação do estado de fuga e, de outro lado, (b) que essa fuga seja ilegítima. Vejamos:
A situação fática da fuga, para justificar a prisão preventiva, requer naturalmente comprovação fidedigna. Jamais, portanto, pode ser fundada em abstratos automatismos (crime grave = perigo de fuga) ou mesmo em presunções decorrentes de equações supostamente legitimantes da prisão (crime hediondo = perigo de fuga). Em razão da sua excepcionalidade, não se coaduna a prisão cautelar com presunções ou automatismos. Nesse sentido vem decidindo nossos Tribunais, especialmente o STF (1.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 83.943/MG, DJ 27/04/04).
A fuga do agente exige, destarte, fatos concretos, reveladores não só da própria situação de fuga senão também de uma atitude obstrucionista à aplicação da lei penal. A situação concreta do sujeito que está vendendo todos os seus bens para fugir do país e, desse modo, impedir um provável ou praticamente certo encarceramento, sem sombra de dúvida justifica a prisão preventiva. O juiz, entretanto, no momento da decretação da prisão, não pode se valer para isso de meras conjecturas ou mesmo do argumento da gravidade do fato.
Gravidade do fato, quantidade da pena que possa vir a ser imposta etc. são dados abstratos que não se compatibilizam com a (indispensabilidade da) exigência da motivação concreta. A propósito, o preclaro Ministro Celso de Mello, no HC 68.202-2, em voto condutor nesse v. aresto unânime, destacou ser nulo o ato da prisão que não apresenta motivação decisória adequada (RTJ 135/686). Não diverge desse entendimento a posição do Colendo Superior Tribunal de Justiça. Confira: 6.ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, RHC 17.762/SP, DJ 19/09/2005; 6.ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, HC 40.975/SP, DJ 12/08/2005.
O que deve sempre ficar evidenciado no decreto de uma prisão cautelar é o periculum libertatis, ou seja, a demonstração de que o sujeito, em liberdade, apresenta concretamente risco para a garantia da ordem pública ou para a conveniência da instrução criminal ou para o cumprimento de eventual pena. Aliás, consolidada jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, veementemente enfatiza o que acaba de ser destacado (Rel. Min. Felix Fischer, HC 32.640/SP, DJ 31.05.2004).
Particularmente no que se relaciona com a fuga do agente cabe exigir, por conseguinte: (a) comprovação de que já aconteceu (situação já consolidada) e que foi ilegítimo o distanciamento do agente do distrito da culpa; (b) ou a constatação real e efetiva de uma situação ?in itinere? (o sujeito já está vendendo seus bens, v.g.) ou, ao menos, (c) um juízo de prognóstico (frente a uma situação de fuga futura) fundado em indícios concretos e seguros, ou seja, reais e não imaginários (nesse sentido, por todos, veja a doutrina de BEVERE, Antonio, Coercizione personale: limiti e garanzie, Milano: Giuffrè, 1998, p. 93 e ss.).
Não se exige a constatação inequívoca de uma ?certeza? ou ?quase certeza? de que o sujeito está fugindo para o exterior ou para local distante não conhecido. Não se chega a tanto. O fundamental e necessário é que o decreto coercitivo aponte uma situação de fuga real e ilegítima, não meramente imaginária. Um claro e inequívoco intuito obstrucionista, que visa a impedir o cumprimento de eventual pena de prisão.
E tudo isso resulta patente do exame detido da personalidade do agente, das suas condições pessoais, profissão, existência ou não de família no local dos fatos etc.. Somente fatos objetivos, em síntese, é que justificam uma prisão.
Porque somente eles é que podem confluir para a ilação de que o sujeito se acha ?impulsionado para a fuga?. Não bastam suposições, sim, comportamentos materiais concretos, exteriorizadores do distanciamento do agente do distrito da culpa. Precisamente porque a prisão cautelar é medida indiscutivelmente excepcional, sua existência deve estar indissoluvelmente coligada com uma motivação concreta da sua absoluta necessidade (rel. Min. Celso de Mello – HC 80.719, DJ 28.09.01).
Ora, se ?a prisão preventiva deve ser considerada exceção, já que, por meio desta medida, priva-se o réu de seu jus libertatis antes do pronunciamento condenatório definitivo, consubstanciado na sentença transitada em julgado?, só pode ser decretada quando dados concretos extraídos dos autos revelam a sua necessidade (rel. Min. Felix Fischer, HC 32.640/SP, DJ 31.05.2004). Mesmo que se trate de caso grave (tráfico de entorpecente, por exemplo), é imperiosa a explicitação dos motivos concretos da prisão (2.ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, HC 80.531, DJ 24/8/01).
Sintetizando: somente condutas reais, concretas e, sobretudo quando proativas (compra de bilhete de avião, encerramento de contas bancárias, dispensa de empregados, fechamento de empresa, venda de bens, preparação de bagagens, contratação de empresa de mudanças etc.), é que revelam a inequivocidade do intuito de fuga.
E cabe ao juiz, inclusive por imposição constitucional (CF, art. 93, IX), fazer a demonstração desses dados objetivos ou desses comportamentos materiais ou proativos. Do contrário seu decreto coercitivo carece de fundamentação objetiva, ou seja, não é válido, não é apto a produzir efeito no mundo jurídico. A mera reprodução do texto legal, de outro lado, não constitui motivo bastante para a decretação da prisão preventiva. Nesse sentido vem decidindo o Colendo Superior Tribunal de Justiça: (STJ, 5.ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, HC 41.651, DJ 29/08/2005).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais www.lfg.com.br)
