Os passaportes já receberam o visto, o espetáculo está mais do que ensaiado, palavras como "thank you", "please" e "very good" estão na ponta da língua. O desafio atual de 14 adolescentes da Companhia de Dança da Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges é administrar a ansiedade até o momento de se apresentarem no New York City Center, em Nova York onde irão competir com cerca de 70 grupos de dança popular de vários países do mundo no Youth America Grand Prix. Eles embarcam amanhã (17) e, na sexta-feira, vão mostrar como se faz o passo do frevo, ao som de um repertório de famosas composições de frevo-de-rua (instrumental) e frevo-canção (com letra). Vassourinhas, marca do carnaval pernambucano, encerra a apresentação, proporcionando uma coreografia que resume a resistência, fôlego, flexibilidade, força e alegria da dança.
Único grupo do Nordeste (entre dez brasileiros) selecionados para o Grand Prix, eles conquistaram o primeiro lugar na categoria dança popular na seletiva Brasil, em outubro, em São José dos Campos. Na ocasião, Recifervendo, nome do espetáculo coreografado por Alexandre Macedo, foi escolhido como o melhor da noite e recebeu a nota mais alta de todas as categorias: 9,9.
Os dançarinos estudam em escola pública e grande parte mora em favelas próximas à sede da escola de frevo, no bairro do Torreão. Eles confiam que podem trazer o troféu da competição. Seria mais uma conquista, uma espécie de coroação à luta travada diariamente por muitos deles contra a exclusão, a miséria e o crime.
Deyvson Vicente, 16, não conheceu o pai, marginal assassinado logo depois do nascimento de Deyvson. Seu irmão mais velho, de 18 anos, está preso. Deyvson costumava acompanhar, ainda criança, a "galera" da favela de Santo Amaro em assaltos. "A violência pra mim era uma coisa natural", disse. "Agora eu quero cada vez mais conhecer outro mundo, fora da maldade que eu já conhecia".
Desde os nove anos, Deyvson, que sempre gostou de dançar freqüenta a escola de frevo, criada em 1996. A escola, que funciona em três turnos atendendo a cerca de 300 alunos por ano numa casa simples, passou a ser a referência de dignidade e acolhimento para os dançarinos. "Aqui somos uma família", diz Werison Fidelis, de 17 anos, empolgado porque o New York City Center integra o complexo de teatros da Broadway. Apaixonado por balé clássico desde criança, quando via apresentações na TV, ele conta que muitos dos seus amigos da favela onde mora, também em Santo Amaro, já morreram, ou estão presos por assalto, roubo, envolvimento com droga. "Eu podia sair no jornal como ladrão, mas sou conhecido na vizinhança como artista", gaba-se.
Em busca de realizar o grande desejo de ser bailarino clássico, ele chegou a fazer um teste na escola teatro Bolshoi, em Joinville (SC). Não passou. Segundo ele, devido a um "probleminha no coração". Pé no chão, observa que a dança é provisória para o bailarino: "Quando o corpo fica desgastado, você está fora do baralho." Por isso, quer fazer faculdade, ter uma profissão para se manter. De preferência com algo ligado ao que ama. Enquanto isso, Werison faz o terceiro ano do segundo grau, um curso básico de balé clássico contemporâneo experimental (ganhou uma bolsa) e vive o sonho (real) de dançar na Broadway.
"Não consigo dormir só pensando na viagem", diz Diógena Carla de Moura, 18 anos, que a exemplo de muitos dos colegas do grupo passou pelo Balé Popular do Recife, criado há 25 anos pela família Madureira, para preservar e divulgar a cultura e os folguedos regionais.
Diógena e Marcela Felipe Andrade, 14, não têm uma história de vida dramática como a dos amigos. "A gente não é rico, mas tem família estruturada, não mora em favela", diz Diógena. Elas são encantadas com a escola de frevo, que freqüentam há três anos. "Aqui a gente aprende com o outro, um ajuda o outro, cada um ensina o que sabe e descobre coisas que não imaginava", diz Marcela.
José Marques e Ianê da Silva são os únicos que já tiveram experiência internacional. Eles participaram do festival de Montreaux, na Suíça, em julho de 2004. O grupo de frevo só ganhou as passagens e estadia e costumava se apresentar na rua, "passando o chapéu", para garantir os outros custos. "Foi inesquecível", atesta Marques.
A seleção para o Youth America Grand Prix abriu outro horizonte para os adolescentes que, desde janeiro recebem aulas de inglês, nas sextas e sábados, visando especificamente às necessidades de comunicação na viagem. Na volta, poderão entrar no curso regular no estabelecimento de ensino que lhes ofereceu bolsa.
Passos
Não dá para dançar frevo de cara amarrada. Qualquer pessoa ri quando "freva" ou tenta fazer os passos do frevo. Com tantas expectativas pela frente, os integrantes da Companhia de Dança da Escola de Frevo está rindo à toa. Quando "frevam", escancaram o riso. De forma contagiante. Com tênis baratos, sem nenhuma sofisticação, às vezes descalços, eles treinam e ensaiam o espetáculo, que já conquistou vários públicos com apresentações no Brasil.
O tempo médio de duração do Recifervendo é de 30 minutos Nos Estados Unidos, eles terão cinco minutos – assim como todos os concorrentes – para mostrar o que sabem, com total domínio, num ritmo presente à sua história, impregnado no corpo e na alma Tesoura, rã eletrizada, grilo, currupio, dobradiça, rojão, tramela, passa-passa em cima e embaixo, são alguns dos passos do frevo presentes no Recifervendo.
O frevo nasceu no final do século 19 com o surgimento dos clubes-de-rua, criados pela classe trabalhadora. No início do século 20, o número de agremiações já superava os 100, só no Recife. Aos desfiles dos clubes – depois chamados de clube-de-frevo – agregaram-se os capoeiristas, que eram perseguidos pela polícia. Para disfarçar, modificaram os golpes da capoeira, acompanhando a música, originando o que depois viria a se chamar "passo", ou a dança do frevo.