Em alguns casos, temos foro por prerrogativa de função para autoridades, ora em matéria penal (v.g., crimes comuns e de responsabilidade), ora em matéria civil (v.g., mandados de segurança e de injunção).
Desde 1964, a Súm. 394 do Supremo Tribunal Federal (STF) estendeu esse privilégio aos crimes cometidos durante o exercício funcional, ainda que o inquérito ou a ação penal viessem a ser iniciados após a cessação daquele exercício.
Dois foram os argumentos usados para pretextar a melhor proteção do exercício da função pública: a) o julgamento dos mais altos tribunais seria mais imparcial; b) a prorrogação da competência dos tribunais superiores, mesmo cessado o exercício funcional, seria maneira de proteger esse exercício.
O primeiro argumento – baseado na afirmativa de que os tribunais superiores são mais imparciais que os juízes singulares – está longe de demonstrado, pois, enquanto estes últimos são nomeados por concurso público de provas e títulos, o Procurador-Geral da República e os Ministros dos maiores tribunais são nomeados livremente pelos próprios administradores e políticos cuja impunidade eles podem assegurar.
O segundo argumento (proteção indireta do exercício da função, mesmo depois de finda esta), perdeu a força com o passar dos anos. Em 1999, o STF cancelou sua Súm. 394, pois a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce e muito menos quem deixou de exercê-lo. Ademais, os privilégios não devem ser interpretados ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos.
Suprimida a Súm. 394, os administradores e parlamentares tentaram duas linhas que lhes dessem de volta o privilégio: a) apresentaram reclamação ao STF, pedindo reconhecesse que as ações de improbidade, fundadas na Lei n. 8.429/92, envolviam autêntico crime de responsabilidade, sendo, assim, de competência originária dos tribunais; b) apresentaram proposta de alteração legislativa para ampliar o foro por prerrogativa de função.
O primeiro caminho foi cursado por meio da Recl. n. 2.138-6-DF, apresentada ao STF (caso do Min. Ronaldo Sardenberg, ainda não julgado, mas que, no momento presente, já conta com 5 votos favoráveis ao foro por prerrogativa de função nas ações da Lei n. 8.429/92).
A esse propósito, quando as ações cíveis contra quaisquer autoridades envolvam pedido de perda do cargo ou suspensão de direitos políticos, devem mesmo ser julgadas pelos tribunais com competência para julgar os respectivos crimes de responsabilidade; mas as ações cíveis que envolvam apenas a proteção patrimonial do erário, podem ser julgadas pelos juízes singulares, como quaisquer ações populares.
O segundo caminho foi urdido com a urgência própria de fim de mandato, com o objetivo de que o foro por prerrogativa de função ficasse assegurado aos exercentes de funções públicas, mesmo depois de cessada a investidura Isso foi feito pela Lei n. 10.628/02, que alterou o art. 84 do Cód. de Processo Penal (CPP), alcançando até mesmo quaisquer infrações cíveis previstas na lei de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92)
Não obstante o advento da Lei n. 10.628/02, resta dizer que, em matéria de ação civil pública que verse apenas a defesa do erário (e não perda de função ou suspensão de direitos políticos), a competência originária para conhecê-las e julgá-las nunca é dos tribunais e sim dos juízes singulares, como nas ações populares (RTJ, 159:28, Informativo STF, 172).
A Lei n. 10.628/02 descurou, pois, estes óbices: a) a competência do STF e do STJ é definida apenas pela Constituição, sendo inconstitucional ampliar a competência dessas Cortes por meio de alteração no CPP; b) o foro por prerrogativa de função existe para resguardar o exercício da função, não para resguardar a pessoa fora do exercício desta; c) se houve razões pelas quais a Lei Maior assegurou foro por prerrogativa de função para alguns exercentes de cargo público, essas razões deixam de existir quando cesse o exercício da função; assim, em vista do princípio da igualdade, é inconstitucional dar foro por prerrogativa de função a quem não tem função pública
Podemos concluir o seguinte:
a) nas ações de improbidade da Lei n. 8.429/92, se o pedido envolver perda da função pública ou suspensão de direitos políticos, o foro será mesmo aquele do crime de responsabilidade;
b) para as ações de improbidade da Lei n. 8.429/92, em que o pedido envolva apenas e tão-somente a defesa do erário, a competência em primeiro grau de jurisdição será de juízes singulares, como nas ações populares;
c) havendo foro por prerrogativa de função, uma vez cessado o exercício desta, não prevalece o foro especial, pois não pode uma lei ordinária ampliar a competência constitucional do STF e STJ.
Hugo Nigro Mazzilli
é ex-membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor, consultor jurídico e advogado.