A cinematográfica Operação Satiagraha desencadeada na semana passada pela Polícia Federal de São Paulo, sob comando do delegado Protógenes Queiroz, que obteve do juiz federal Fausto Martin de Sanctis ordens de prisão contra o banqueiro Daniel Dantas, o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, além do inevitável e rumoroso alcance com que foi tratada pelos meios de comunicação, tal o seu impacto na sociedade, serviu também para reabrir as feridas de uma indigesta crise entre o Executivo e o Judiciário, tanto quanto se pode julgar pelas aparências até então mantida dentro dos limites do bom senso e da própria isonomia entre os poderes.

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Na verdade, nada mais seria tão prejudicial ao País num momento como esse senão a contaminação irreversível das relações entre os liames mais significativos da ordem republicana, sobretudo quando o foco do interesse da maioria da população está centrado na absoluta necessidade de garantir às instituições do Estado (e não do governo) toda a liberdade para cumprir suas tarefas constitucionais, obedecidos com todo o rigor os requisitos legais. A aludida crise entre Executivo e Judiciário foi identificada por vários analistas da grande imprensa na concessão pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de habeas corpus em favor de Dantas (duas vezes), Nahas e Pitta, ordenando que fossem liberados pela carceragem da Polícia Federal. Uma curiosa analogia lembrada por um desses analistas é que o STF sempre tratou de habeas corpus como um caso típico de UTI, muito embora no caso presente tivesse agido com a urgência urgentíssima dos médicos socorristas chamados a intervir em situação de extrema gravidade.

Na boataria inspirada pela sarabanda de prisões e solturas da semana passada, chegou-se ao cúmulo de imaginar a expedição de hipotético monitoramento das atividades do gabinete do presidente do STF, incluindo a filmagem, cuja ordem teria partido do juiz Fausto de Sanctis, agastado diante da reação contrária de Gilmar Mendes. Até o ministro da Justiça, Tarso Genro, ademais das inúmeras vezes que se pronunciou sobre o assunto, fez o que se esperava da autoridade responsável e desmentiu categoricamente quaisquer iniciativas no sentido de desrespeitar o chefe da mais elevada corte de Justiça do País. Mesmo o juiz federal a quem se atribuiu a leviandade, posto que na linguagem hermética do jargão característico dos meios jurídicos, admitiu que não seria estulto a ponto de ignorar a realidade mais primária da hierarquia constitucional.

Para deixar tudo na mais perfeita harmonia, luminares do Direito consultados sobre a questão ponderaram que tanto o juiz federal teve razões legais para expedir as ordens de prisão dos magnatas, que experimentaram por algumas horas o desconforto das algemas e das celas da Polícia Federal, quanto o presidente do STF em mandar soltá-los. Em relação ao uso de algemas, houve também divergência entre os intérpretes da legislação em vigor. Alguns viram imperdoável excesso na ação da Polícia Federal, ao passo que outros se referiram ao fato com a visão pragmática de que dar a ordem de prisão e algemar o preso são aspectos inerentes à rotina policial, independentemente da condição social do indivíduo. Alguns se aventuraram a vaticinar, por causa dos possíveis desmandos cometidos nas prisões, severa punição ao delegado Protógenes Queiroz, que passou de herói a réprobo em velocidade tão vertiginosa quanto a custódia das personalidades que trancafiou no xadrez.

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Por sua vez, em interpretações requintadas mas não menos impensáveis houve igualmente os que pretenderam vislumbrar na Operação Satiagraha uma perigosa nostalgia dos tempos recentes em que a cidadania foi privada de seus direitos mais elementares. Afronta a que a sociedade deve estar preparada para repelir com firmeza e altivez.