A Lei de Responsabilidade Fiscal representou profunda mudança na condução das finanças públicas no Brasil, constituindo-se no grande instrumento de combate ao mau uso do dinheiro público e num verdadeiro código de conduta para o equilíbrio da gestão. Essa lei veio para disciplinar a gestão fiscal e a melhor composição das contas públicas, pois o Estado contemporâneo é incompatível com as forças malévolas da discricionariedade irresponsável, de irregularidades e de ofensa ao princípio da legalidade.
Na sua missão reformadora, a LRF teve a virtude de alcançar a globalidade dos órgãos da administração pública. Foi a primeira vez que uma norma legal, diferentemente de suas antecessoras, não deixou ninguém de fora, ao tempo em que provocou indiscutível impacto na persistente e negativa cultura de gastar mais do que se arrecada e na espúria aceitação de que o tesouro não tem limites. Em seu aparato normativo, construiu um ambiente seguro para a tomada de decisões e uma pauta de modernização do processo decisório, com base em avançados mecanismos de gestão pública.
O teste já foi realizado e a Lei de Responsabilidade Fiscal, na prática, demonstrou resultados efetivos ao espancar definitivamente a utilização indiscriminada, política e indevida de recursos governamentais e introduzir o planejamento, a moralidade e a responsabilização como fundamentos da ação administrativa. Agora, transcorridos quatro anos de sua vigência, é possível a análise de certos dispositivos, em especial o artigo 42, cuja discussão tem levado a interpretações díspares quanto ao seu alcance.
Que faz parte da literatura da ação administrativa pública a nefasta figura da conta restos a pagar, originária da utilização indevida de recursos orçamentários gráficos, sem suporte financeiro, gerando déficits vergonhosos e comprometendo o equilíbrio das contas públicas. Essa prática, consagrada nos três níveis de governo, gerou o entendimento de que esse dispositivo veda, ao titular de poder ou órgão governamental, nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser honrada dentro dele ou que deixe saldo para ser pago no exercício seguinte, sem a correspondente disponibilidade de caixa.
Deveras, a interpretação da norma oferece, num primeiro momento, a idéia básica, nuclear, de completa paralisia da atividade administrativa, com a conseqüente descontinuidade dos projetos de desenvolvimento. No entanto, não é isso o que prega a LRF. Rigorosamente, a lei quer evitar a inscrição de compromisso em restos a pagar, decorrentes de dispêndios autorizados, nos últimos oito meses de mandato, o que, com certeza, inviabilizará a gestão futura, abortando a idealização de novas políticas públicas e comprometendo a programação de despesas do próximo período.
Entendo, todavia, que os gestores públicos, em especial os prefeitos municipais, não estão absolutamente impedidos de celebrar contratos nos oito meses de sua gestão, desde que possuam disponibilidade de caixa para o efetivo pagamento dentro do exercício financeiro. Ainda, em face do reconhecimento de que a administração não pode ficar engessada e subordinada a obstáculos intransponíveis para a execução de projetos de desenvolvimento, de curto e longo prazos, nada impede que sejam assumidos compromissos cuja duração se estenda por mais de um exercício financeiro, desde que previstos no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na própria Lei Orçamentária, e que estejam embasados em programação financeira e fluxos de caixa rigorosamente elaborados e que indiquem posição financeira concreta e exeqüível.
Consagra-se, portanto, o fato de que o administrador não deve colaborar para a interrupção da seqüência de prestação de serviços demandados pela coletividade, mas precisa atuar de forma razoável e subordinado aos limites da receita possível. É fundamental que o administrador não se afaste dos novos encaminhamentos da boa gestão. É exigência da ética, da cidadania e do Estado Democrático de Direito.
Rafael Iatauro
é conselheiro do Tribunal de Contas do Paraná.