Por motivo de espaço e de ritmo que o abnegado professor Scherner penou para me ensinar como um dos fundamentos da composição, omiti a parte final da narrativa do comentarista da fábula de Esopo – O leão e o onagro. Por isso peço licença ao editor e ao peregrino leitor para trazê-la aqui. É um ato de correção e de justiça para não mutilar intencionalmente o trabalho alheio e porque o zeloso comentarista considera essa parte de seu trabalho de muito valor, modéstia à parte. Não seria eu, que me servi dele, quem iria menosprezá-lo. Assim, vamos ao que continuou dizendo.
Após a assembléia dos leões para decidirem sobre o acordo com os onagros, Heloísa, já tarde da noite, retirou-se para sua caverna. Ali, deitou-se e continuou a pensar no que já vinha fazendo pelo caminho: o que se propusera, o que se argumentara; o que ela mesma dissera e o que vira de reação até o consenso, inclusive com o seu voto, constrangido, é verdade. As coisas não se harmonizavam nem em sua cabeça nem em seu coração. Haviam-lhe ensinado que o partido, digo, o grupo juntara-se e seguia por princípios éticos. Tal origem e procedimentos eram o que o distinguia dos demais. Assimilara esses ensinamentos. Incorporara-os em seu sangue, em seus ossos. Eram sua existência. E, agora, via de cima a transgressão, o repúdio silencioso como coisa natural, como se não houvesse, lá atrás, toda uma doutrina justificadora dos princípios rígidos e uma vigilância pela coerência correlata de conduta. Seus pensamentos se chocavam. Já duvidava de si. Talvez não tivesse compreendido corretamente os princípios por que se filiara ao grupo e por que já lutara lutas sangrentas. Como admitir, agora, essa reviravolta dos chefes? Onde estava o erro ou o engano? Não via sinal de conciliação com os próprios pensamentos. Eles não se sustentavam. Levantou-se, rodou, acomodou-se de novo e, exausta, já de madrugada, adormeceu em um sono cortado de pesadelos, em que roubavam os seus filhotes e ouvia a voz rascante do presidente de honra: “Ou fazemos o acordo ou ficaremos eternos pretendentes do poder”.
Aqueles velhos leões que haviam observado Heloísa em suas objeções ao acordo, na saída se manifestaram. Um deles, o mais velho, disse que Heloísa não evoluíra. Havia ficado naqueles mandamentos do Livro Amarelo destinados à cooptação de militantes e à obediência aos comandos sob a suposta doutrina. Apesar de ter exercido um mandato no senado, não aprendera aquilo que não se ensina para ascender aos escalões do poder: aquelas flexões, aquelas sinuosidades… E, se não aprendera até aí, não se poderia esperar mais dela, a não ser uma atitude de frustração que merecia ser acompanhada. Outro leão ponderou que, talvez, a experiência na reunião lhe reformasse o modo de apreciar os fatos e situá-los nas contingências da realidade. Um terceiro discordou: Não, não acreditava nisso. Nem mesmo mandá-la para um Centro de Reeducação teria efeito. O melhor seria isolá-la e deixar que o tempo passasse por ela. E, assim, concordaram sobre Heloísa, a brava leoa.
O nosso comentarista deixou a Esopo a moral de sua fábula sobre os pretensos espertos. Mas não fugiu do viés dos comentaristas que, não tendo criatividade original, servem-se do autor para fazer a sua prédica e por isso ele termina sua narração dizendo: “Jovens, orai por vós”.
J. Ribamar G. Ferreira é advogado e professor aposentado da UFPR.