Fim das leis de perdão reabre centenas de processos a militares na Argentina

Um dia depois que a Corte Suprema de Justiça anunciou a "inconstitucionalidade" das Leis do Perdão aos militares e policiais envolvidos em crimes contra a humanidade durante a última ditadura (1976-83), diversas organizações de defesa dos direitos humanos começam a preparar-se para solicitar o processo dos ex-repressores ou a reabertura de casos que foram suspensos com as anistias dos anos 1986 e 1987.

Nesta quarta-feira, as organizações deixaram de lado os festejos da véspera pelo fim de 19 anos de impunidade dos militares para atarefar-se para a "batalha jurídica" que os ocupará ao longo dos próximos meses e anos.

O cálculo dessas associações e do próprio governo do presidente Néstor Kirchner é que de 500 a 1.000 militares poderiam ser processados por envolvimento com a repressão, tortura e morte de mais de 30 mil pessoas. Além deles, outros 2.000 oficiais, suboficiais e demais subalternos das Forças Armadas e da Polícia poderiam ser convocados a prestar depoimento.

Na terça-feira a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade das leis de Ponto Final (de 1986, que determinou um prazo de 30 dias para a abertura de novos processos, salvando milhares de militares a comparecerem aos tribunais) e a de Obediência Devida (de 1987, que implicava na absolvição dos oficiais de menor grau e subalternos que haviam cometido crimes por ordens superiores).

Estas leis fizeram com que milhares de ex-repressores vivessem livremente entre fins dos anos 80 e fins dos anos 90. Mas, nos últimos cinco anos, os organismos de defesa dos direitos humanos encontraram uma brecha jurídica para colocar alguns oficiais novamente na cadeia. A saída foi processá-los pelos seqüestros de crianças durante a ditadura, já que o crime de seqüestro, enquanto o seqüestrado não reaparece, não prescreve jamais.

Isto possibilitou que 128 militares – entre eles os chefes da ditadura como o general Jorge Rafael Videla e o almirante Emilio Massera – fossem presos. Outros 19 militares são fugitivos da Justiça. Além deles, outros três são considerados atualmente mentalmente incapazes para serem julgados. Na lista das "personalidades" detidas pelos seqüestros estão ex-capitão Alfredo Astiz, os generais Domingo Bussi Cristino Nicolaides, Guillermo Suárez Mason e Luciano Benjamín Menéndez.

Todos estes ex-repressores – alguns atualmente detidos em prisões militares ou cumprindo prisão domiciliar (os maiores de 70 anos) – poderão ser incluídos nos processos a serem abertos por outros motivos, como o assassinato, tortura e apropriação indevida de bens de milhares de civis. Mais de 50 processos já estão abertos em Buenos Aires e diversas províncias da Argentina. A expectativa é que com o fim das leis do perdão estes processos terão um novo impulso.

Os organismos de defesa dos direitos humanos esperam que, em março do ano que vem, quando o país recordará os 30 anos do golpe que deu início à última ditadura, grande parte dos processos estejam encaminhados e que os ex-repressores tornem-se habitués dos tribunais. "Os militares precisarão sentar-se na frente de um juiz e dizer o que aconteceu e assumir sua responsabilidade", disparou Nora Cortiñas, líder da organização Mães da Praça de Mayo-Linha Fundadora.

Segundo ela, os crimes cometidos durante a ditadura "ofendem a humanidade".

Para Paula Maroni, da organização HIJOS, que reúne os filhos de "desaparecidos", o fim das leis do perdão possibilita o ressurgimento da "esperança". Ela sustenta que "terminou o caminho da impunidade…agora começa o caminho da Justiça, que será longo, pois há mais de 400 repressores. Iremos atrás deles. HIJOS estará focalizado nisso, daqui para a frente".

A dificuldade da tarefa também é reconhecida pela líder das Mães da Praça de Mayo, Hebe de Bonfini, que declarou que será preciso "trabalhar muito" nos próximos tempos.

Os analistas duvidam que as Forças Armadas poderiam ensaiar alguma espécie de levante, já que – além do desprestígio sofrido desde o fim da Guerra das Malvinas, e mais especificamente, com a divulgação dos horrores da ditadura – os militares não contam com os meios para tentar uma rebelião. Nos quartéis falta munição e os blindados quase não contam com diesel para moverem-se.

Nas Forças Armadas os sentimentos estão divididos. Na velha guarda, que será convocada a ir aos tribunais, o clima é de temor. Entre os oficiais mais jovens, que não tiveram postos de comando durante a ditadura, o sentimento é de pragmatismo e de acatar o fim das leis do perdão, embora isso tenha um sabor amargo. O chefe do Exército, general Roberto Bendini, aceitou a decisão da Corte Suprema, afirmando que "era um fato que estávamos esperando. A partir dos julgamentos, os responsáveis serão condenados". O chefe da Marinha, o almirante Jorge Godoy explicou que "a Armada respeita as decisões da Justiça".

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