Fim da prisão civil do depositário infiel

O império romano acabou com a prisão civil por dívida (excepcionando-se a de alimentos) no século V a.C., quando revogou a Lex Paetelia Papiria.

Os romanos concluíram que a liberdade da pessoa não podia ser tolhida em função de dívidas.

No Brasil, vinte e seis séculos depois, foi feita a mesma coisa: a histórica decisão do STF, de 3/1208 (RE 466.343.-SP), passou a constituir a certidão de óbito da prisão civil do depositário infiel. Nesse ponto o Brasil passou a observar os atuais padrões de civilização seguidos no mundo todo.

Mas ao mesmo tempo a referida decisão também configura a certidão de nascimento de um novo modelo de Estado: o constitucional internacionalista (ou transnacional).

Do Estado legalista (século XIX) passamos para o Estado constitucional (1945-1946: julgamentos de Nuremberg) e a partir de agora alcançamos o Estado constitucional internacionalista (3/12/08).

O fim a prisão civil do depositário infiel: viraram pó (no Brasil) todas as hipóteses de prisão civil em razão de depósito (Pulvis es et in pulverem reverteris És pó e a ele voltarás).

Não interessa qual é o tipo de depósito (judicial, alienação fiduciária etc.). Nenhuma norma que cuida desse tipo de prisão civil continua válida. Acham-se vigentes, mas perderam a validade (Ferrajoli). Como assim?

É que os tratados internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7.º, 7, e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 11) só permitem a prisão civil em caso de alimentos.

Não autoriza nenhuma outra prisão civil por dívida. Essas normas valem mais que a legislação ordinária no Brasil. Qualquer outra com elas conflitante não vale. Por quê?

Porque o STF reconheceu, finalmente (por cinco votos a quatro), o valor supralegal dos tratados de direitos humanos já vigentes no Brasil (RE 466.343-SP, j. 3/12/08).

Dentro do STF havia (ultimamente) duas correntes (sobre o assunto): 1.ª) a sustentada pelo Min. Gilmar Mendes, no sentido de que tais tratados possuem valor supralegal (acima da lei, mas abaixo da constituição) RE 466.343-SP; 2.ª) a defendida pelo Min. Celso de Mello que admitia o valor constitucional dos tratados (HC 87.585-TO). Preponderou a primeira tese (por cinco votos a quatro).

Todos os tratados, então, contam apenas com valor supralegal? Não. Por força da EC 45/2004 foi agregado ao art. 5.º da CF um novo parágrafo (§ 3.º) que confere valor de Emenda Constitucional ao tratado que for aprovado com quorum qualificado: três quintos dos votos de cada Casa, em duas votações. Nenhum tratado no Brasil, até agora, foi aprovado com essa exigência. Logo, todos que já vigoram possuem valor supralegal (não constitucional).

Se as normas dos tratados valem mais do que a lei, toda lei que conflita com eles não conta com validade. Não importa se se trata de lei anterior ou posterior ao tratado.

Que isso significa? Significa que, a partir de agora, toda lei deve ter dupla compatibilidade vertical: com a constituição e com os tratados de direitos humanos. Qualquer antagonismo resolve-se pelo fim da validade da lei ordinária. O inferior cede em favor do superior.

Temos que admitir, por conseguinte, uma nova pirâmide jurídica no nosso país: no patamar inferior está a lei, na posição intermediária estão os tratados de direitos humanos (aprovados sem o quorum qualificado do § 3.º do art. 5.º da CF) e no topo está a constituição. Já não basta (para se conhecer o Direito) dominar as leis e os códigos (Estado legalista).

Doravante só é jurista pleno quem também conta com razoável intimidade com a constituição (Estado constitucional de Direito) assim como com os tratados de direitos humanos (Estado constitucional internacionalista).

De qualquer modo, em matéria de direitos humanos quando os tratados internacionais conflitam com a constituição brasileira (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel) a solução não pode ser buscada no princípio da hierarquia.

Não funciona (no, conflito entre os tratados e a constituição) a hierarquia, sim, o princípio pro homine, que significa o seguinte: sempre prepondera a norma mais favorável ao ser humano.

Não importa a hierarquia da norma, sim o seu conteúdo. O mais favorável prevalece. Não há que se falar em revogação da norma constitucional que conflita com o tratado. Todas as normas continuam vigentes. Mas no caso concreto será aplicada a mais favorável.

E a norma inferior (lei) que conflita com o tratado? Perde ou não tem validade, quando conflita com o tratado. É o que ocorreu com todas as leis que cuidam da prisão do depositário infiel no Brasil. Todas perderam sua validade.

E se o legislador editar nova lei disciplinando o mesmo assunto? A lei não terá validade. E quando a lei inferior é mais ampla que os tratados? Aí vale sempre a lei mais ampla, por força do princípio pro homine.

O Direito, como se vê, não se confunde com a lei. Ele começa com o constituinte e termina com a jurisprudência dos tribunais (nacionais e internacionais). A lei é uma parte desse oceano. Pode ser válida ou não: tudo depende da sua compatibilidade com as normas superiores (internacionais e constitucionais).

Convenhamos: nenhum jurista no Brasil pode ignorar a histórica decisão do STF de 3/12/08: essa data tornou-se muito importante para nós. Não só porque acabou com a prisão civil do depositário infiel, senão, sobretudo, porque inaugurou um novo modelo de Estado, de Direito e de Justiça: o constitucional internacionalista.

Isso implica que o juiz já não pode se contentar em conhecer apenas as leis e os códigos. Esse modelo de juiz (legalista positivista) está morto. Será cada vez mais reconhecido como jurássico (ou dinossáurico).

O que se lamenta (em pleno século XXI) é que ele está morto mas não foi (ainda) sepultado! A atual (assim como as futuras gerações) conta com o dever de extirpar do nosso mundo jurídico esse juiz legalista. Marcação sob pressão nele, esse é o nosso desafio! O STF fez a parte dele. Todos os demais operadores jurídicos, agora, devem fazer a sua, posto que é assim que caminha a humanidade.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

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