Figuras & Figuraças do anedotário universal: Faoro & José Sarney (o rei do patrimonialismo tupiniquim)

Faoro, os políticos brasileiros e o patrimonialismo: patrimonialista é praticamente toda classe política brasileira.

Pode haver exceções, mas são pouquíssimas. Você pode discutir níveis, mas não se pode deixar de admitir que os políticos brasileiros, em geral, além de contarem com todos os defeitos dos políticos de todo mundo, assumiram (alguns descaradamente, outros secretamente) a marca do patrimonialismo, que foi estudado e descrito meticulosamente por Raymundo Faoro (em sua obra Os donos do poder, 13.ª ed., São Paulo: Globo, 1998; a primeira edição é de 1958), que é um gaúcho que se tornou figura de proa na literatura brasileira. Foi jurista, sociólogo, historiador e cientista político.

Que se entende por patrimonialismo? Consoante a bem elaborada síntese de Daniel Barile da Silveira(1), por patrimonialismo, cuja matriz teórica remonta ao jurista e sociólogo alemão Max Weber, entende-se o trato da coisa pública pela autoridade como se privada fosse.

No Brasil foi Sérgio Buarque de Holanda (conforme o autor citado) que, em primeiro lugar, abordou “o perfil do homem público nacional que, nascido e criado sob um invólucro cultural marcado pela forte presença dos valores de um núcleo familiar de caráter patriarcal, trazia para suas atividades na seara pública características próprias do meio em que se fez indivíduo”.

Mas a elaboração mais refinada da teoria patrimonialista (ainda segundo o autor citado) ganhou corpo e maior estilo no pensamento político de Raymundo Faoro, quando da publicação, em 1958, de sua obra paradigmática “Os Donos do Poder”, considerada um dos maiores marcos teóricos da conciliação entre dominação tradicional-patrimonial weberiana e a formação de nossa identidade política.

O patrimonialismo seria, para Faoro (figura de proa inigualável na narrativa da formação do patronato político brasileiro), a característica mais marcante do desenvolvimento do Estado brasileiro através dos tempos.

Ao analisar as raízes históricas do Estado Português, Faoro descobre que a fundamental peculiaridade de sua forma de organização estava calcada no fato de que o bem público – as terras e o tesouro da Corte Real – não estava dissociado do patrimônio que constituiria a esfera de bens íntima do governante.

Tudo constituía um imenso conjunto de possessões sob a égide de disponibilidade fática e jurídica de deliberação do príncipe. Os governantes se apropriam do Estado, de seus cargos e funções públicas, impondo-se um regime de uso dessas vantagens advindas do status ocupado para a utilização da máquina estatal em proveito próprio, para a satisfação de interesses particulares.

Seguindo nossa exposição (diz o autor citado), a terceira vertente teórica que versa sobre essa curiosa temática da difícil relação entre público e privado no Brasil é de Oliveira Vianna, que aborda a questão dos clãs políticos, ou seja, pequenos grupos de indivíduos que diretamente influíam nas decisões práticas da vida política local segundo critérios baseados em sua conveniência particular.

Em uma análise histórica, a partir do momento em que algumas cadeiras institucionais eram obtidas a partir do voto, esses clãs políticos agora se transformam em “clãs eleitorais”, no qual a busca pelo poder de Estado os compele a agregação (“solidarização”) para possibilitarem cooptar os votos necessários ao jogo político.

Na visão de Vianna, o “clã eleitoral” foi a gênese de nossos partidos políticos, os quais inicialmente se dividiram em “Liberais” e “Conservadores” e depois se reproduziram em escala nacional para o alcance de amplas parcelas demográfica e territorial.

José Sarney é o rei do patrimonialismo no Brasil: não é o único, mas seguramente é um dos campeões (até pela sua idade, quase oitenta anos, e pelo tempo que exerce o poder patriarcal no Brasil, mais de cinquenta anos).

A confusão entre o público e o privado (na vida dele) &eac,ute; total: José Adriano Cordeiro Sarney, seu neto, intermediava empréstimos consignados entre bancos e servidores do Senado; nomeou incontáveis afilhados políticos no seu gabinete; os funcionários da Fundação José Sarney são assessores parlamentares do Senado; emprestou apartamentos pagos pelo Senado a uma funcionária; gastou sua verba pública para contratar uma empresa para organizar sua biblioteca particular; pagou com dinheiro público o mordomo Secreta, que prestava serviços para sua filha; um outro neto foi exonerado do serviço público em ato secreto; duas sobrinhas foram nomeadas secretamente para trabalharem em gabinetes de outros senadores; uma sobrinha e uma parente de Jorge Murad (seu genro) foram nomeadas secretamente, uma delas mora na Espanha; irmão e cunhada foram nomeados para cargos de confiaça na Casa; recebia auxílio-moradia de R$ 3.800,00, embora tivesse casa em Brasília e residência oficial etc. etc. etc. Confusão total e absoluta entre o patrimônio público e o privado.

O Brasil arcaico: o Brasil atrasado, arcaico, patrimonialista, país onde a malandragem, dizem, corre solta, só confirma, a cada dia (porque aqui é uma farra depois da outra), que política e ética não combinam, como dizia Maquiavel (ou, pelo menos, não combinam o tempo todo). Outra constatação: é inútil apostar só em controles (internos) políticos (sindicâncias internas, CPI, Conselho de Ética, Tribunal de Contas etc.).

Conclusão: todo desvio do Poder Político (Executivo e Legislativo), especialmente quando atinge níveis escabrosos, justifica a imediata intervenção do controle jurídico (Polícia Federal ou Estadual, Ministério Público, investigações jurídicas, ações penais e civis, intervenção do Judiciário, do CNJ etc.).

Esse controle jurídico, para que não descambe para a arbitrariedade, deve ser fiscalizado atentamente pela advocacia (cuja luta sempre foi a de fazer preponderar os direitos e garantias fundamentais dos processados).

Como já afirmamos, esse é o único caminho constitucional e eticamente válido para se enquadrar, nos moldes republicanos, o atavicamente corrupto Poder Político brasileiro.

O Brasil só sairá do seu atraso (só começará a deixar de ser um país arcaico) no dia em que estiverem funcionando alinhadamente todos os mecanismos de controle da atividade pública. Esse é o caminho!

Notas:

(1) Disponível em http://conpedi.org /manaus/arquivos/Anais/Daniel %20Barile%20da%20Silveira.pdf

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br

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