Esses operários, compelidos a venderem-se a retalho, são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio e, portanto, estão igualmente sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado(1)
Conforme escreveu Henry M. Paulson Jr.(2) estamos enfrentando uma crise financeira mais severa e imprevisível do que qualquer outra de nosso tempo.
Assistimos às falências, ou o equivalente a falências, de Bear Stearns, IndyMac, Lehman Brothers, Washington Mutual, Wachovia, Fannie Mae, Freddie Mac e do American International Group. Cada uma delas teria por si só conseqüências tremendas(3).
Cabem, nesse passo, algumas singelas considerações a respeito do tema, evidentemente sem qualquer pretensão de completude. Com efeito, a crise financeira sistêmica [iniciada em setembro/2008] não é, por óbvio, somente norte-americana.
A crise – muito embora por aqui se tenha dito que o país não sofreria a sobra de vento [cabendo definitivamente esquecer desastrosa afirmação] -, chegou e vem deixando suas marcas na economia [sendo certo que a ondulação da água foi maior do que se pensava], cabendo, pois, olhar para um horizonte bem mais aberto.
Primeiramente, enquanto se verifica que nos Estados Unidos os mutuários simplesmente perdem suas casas em decorrência de dívidas hipotecárias(4), e paralelamente sabe-se que houve a edição de um pacote econômico de US$ 700 bilhões destinado a [procurar] estabilizar o sistema financeiro, por aqui muitas companhias [especialmente aquelas pertencentes aos setores automotivo e eletroeletrônico] já começaram a agir, e o primeiro a pagar a conta [como sempre] é o trabalhador de chão de fábrica.
Com efeito, advindo a crise, a primeira decisão é reduzir, quanto possível, a produção e dar férias coletivas aos trabalhadores, considerando especialmente, além do que vem ocorrendo nos Estados Unidos, o período de festas natalinas.
E o efeito multiplicador é conseqüência inevitável, pois aqueles fornecedores que também dependem das grandes empresas são obrigados a seguir o mesmo caminho, até e principalmente diante da queda de produção e da ausência de interessados na aquisição de bens. Há mais produção do que consumo. O exemplo do mercado de automóveis é deveras típico.
As montadoras querem produzir [especialmente as norte-americanas adoram ou adoravam – produzir os utilitários esportivos de luxo, os SUVs], os consumidores querem adquirir [considerando as taxas de financiamento e o prazo a perder de vista para honrar a obrigação], mas nem sempre logram êxito em cumprir tal expectativa [e a busca e apreensão se torna inevitável], e as vias públicas simplesmente ficam cada vez mais intransitáveis, considerando o exagerado volume de automóveis. É o paradoxo.
De um lado, as concessionárias com amplo estoque de veículos e, de outros, os consumidores, ávidos pela aquisição de bens, restando as avenidas e ruas sem espaço para todos esses automóveis e motocicletas.
Conforme matéria jornalística publicada no matutino já indicado, só na região de Curitiba mais de 100 [cem] empresas do ramo de metalurgia pensam em suspender a produção entre os meses de dezembro e janeiro, o que implicará em férias coletivas; na de Campinas uma única empresa anunciou a dispensa de mil trabalhadores, o que [ainda] não se concretizou, mas não menos certo que pelo menos 660 empregados foram dispensados a partir de outubro.
Ainda conforme a matéria, 480 trabalhadores perderam seus postos de trabalho por intermédio de [simples] carta [e isso ocorreu, também segundo o jornal, em Rio Claro]. Então, a onda da crise é bem maior do que se pensava inicialmente e o país também se encontra no olho do furacão.
Ao primeiro sinal de crise a primeira medida da companhia é, quase que invariavelmente, conceder férias coletivas [não raramente forçadas] aos trabalhadores, ainda mais se se avizinha o mês de dezembro e o período de festas, como sói ocorrer; a segunda medida é a dispensa de trabalhadores, e os dados aqui apresentados be,m demonstram a realidade. Portanto, os dados são públicos, o primeiro a pagar a fatura da crise é, invariavelmente, o trabalhador.
Isso bem espelha uma realidade: em tempos de acentuada crise, os valores, os direitos sociais e princípios de cunho eminentemente constitucional [em especial do da dignidade da pessoa humana] são praticamente esquecidos; inexiste também em tempos de crise [ou mesmo em tempos regulares], a denominada economia solidária(5); em tempos de crise, tal como a que agora se apresenta, e as proporções ainda não foram plenamente estabelecidas, o trabalhador deveria ser visto como de outra forma: um cidadão que detém valor e uma pletora de direitos fundamentais(6); cabe, pois, repersonalizar o sujeito de direito, reconhecendo o trabalhador como ser humano e, nessa dimensão, vendo-o como elemento principal e nuclear da nova ordem constitucional, a qual lhe assegura dignidade, bem-estar e justiça social (arts. 1.º, III, 170 e 193 da CF), conforme palavras de Dallegrave Neto(7).
Em tempos de crise, especialmente em relação aos que gozam de férias coletivas [não raras vezes forçadas], sabe-se muito bem que nem sempre têm condições mínimas de bem-estar(8), pois a era é pós-moderna e não mais existe Estado provedor; o mundo evoluiu e é dinâmico, especialmente o mundo econômico.
Impera a idéia de livre mercado, com base no receituário neoliberal, desde [quem sabe] o Consenso de Washington [novembro de 1989], sendo não menos certo que há uma tensão indisfarçável entre o neoliberalismo e os direitos sociais; há necessidade, mesmo em tempos de crise, de se observar a idéia de direito ao trabalho e, nessa linha, perceber que a ordem econômica também tem como arrimo a valorização do trabalho humano, a fim de que o trabalhador tenha uma existência digna, o direito a um mínimo existência, por assim dizer.
O direito ao trabalho entra em reta de colisão com a dispensa de trabalhadores por parte das grandes companhias; a desregulamentação, a flexibilização e a própria deslegalização do direito do trabalho simplesmente destoam do modelo constitucional adotado no país e vão contra o direito de inserção destes mesmos trabalhadores, deixando de lado a valorização do trabalho humano.
Nota-se, diante dos casos concretos diariamente noticiados, que o homem, o trabalhador, não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter, conforme palavras de Georg Lukács(9).
E o mesmo pensador vai bem mais além, quando se ocupa da reificação, adverte que se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador.
Por outro lado, o processo de trabalho é fragmentado, nua proporção continuamente crescente, em operações parciais abstratamente racionais, o que interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente(10). E é justamente em decorrência desta mecanização que o trabalhador vê a reificação do próprio trabalho.
Finaliza-se este pequeno texto com um importante escrito de Dallegrave Neto, que bem se amolda ao que foi escrito, especialmente quando se fala em crise [em sentido amplo]: a pátria é amada, mas será mais amada no dia em que formos capazes de restaurar valores éticos, de dignidade e de justiça.
Não a ‘minha justiça’, ou a ‘sua justiça’, mas a maior de todas: a JUSTIÇA SOCIAL(11). Vale a pena pensar a respeito, mas especialmente em tempos de crise, cuja ondulação é maior do que se pensava.
Notas:
(1) Karl Marx & Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista [1848]. Porto Alegre: L&PM, 2005, p. 35. Tradução:Sueli T. B. Cassal.
(2) S,ecretário do Tesouro dos EUA.
(3) O Estado de São Paulo, B9, de 19/11/2008. Com efeito, duas montadoras japonesas disseram que cortarão 2,7 mil empregos no Japão [O Estado de São Paulo, B11, de 21/11/2008]. As três maiores montadoras norte-americanas pedem a bagatela de US$ 25 bilhões do dinheiro público – para a [tentativa de] reorganização, quando se sabe que a crise automotiva não surgiu em 2008. As empresas não estão bem, mas o mesmo matutino informou que ceo de uma delas recebeu salário de US$ 14,4 milhões no ano passado O Estado de São Paulo, B8,. As empresas estão com o pires na mão, mas o mesmo não ocorre com seus executivos.
(4) E vem imediatamente à memória algumas cenas do documentário Roger & Me, de Michael Moore [Warner Bros. Pictures, 1989], especialmente aquelas que mostram pessoas sem teto, simplesmente desabrigadas na cidade de Flint, Estado do Michigan, em decorrência de despejos; aquelas tristes cenas de trabalhadores dispensados na véspera de Natal, em decorrência do fechamento de fábricas.
(5) O material bibliográfico é importante e vasto, citando desde logo, uma importante obra: DALLEGRAVE NETO, José A. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 2.ª edição. São Paulo: LTr, 2007, especialmente pp. 327/328. Ainda, ver, especialmente quanto ao tema desemprego estrutural, a obra coordenada pro Dallegrave Neto: Direito do Trabalho Contemporâneo. Flexibilização e Efetividade. São Paulo: LTr, 2003.
(6) DALLEGRAVE NETO, José A. Op. cit., p. 329.
(7) Idem, p. 331.
(8) E nesse passo vale a pena ler a obra de Abílio L. Castro de Lima: Globalização Econômica Política e Direito. Análise das Mazelas Causadas no Plano Político-Jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
(9) História e Consciência de Classe. Estudos sobre a Dialética Marxista. São Paulo:Martins Fontes, 2003, pp. 203-204. Tradução:Rodnei Nascimento.
(10) Op. cit., p. 201.
(11) Direito do Trabalho Contemporâneo. Flexibilização e Efetividade, cit., p. 30. Grifos no original.
Carlos Roberto Claro é advogado; professor [adjunto I] de Direito Comercial, no Unicuritiba; professor na pós-graduação [lato sensu] da mesma instituição de ensino; mestre em Direito [área de concentração: Direito Empresarial e Cidadania] pelo Unicuritiba e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA]
