Faz-de-conta

O Brasil é mesmo o país do faz-de-conta. Ninguém percebeu a tempo a pantomima eleitoreira que estava em curso desde o início do ano no Morro da Providência, sobretudo para evitar a repetição de um fato recorrente nas favelas do Rio de Janeiro, isto é, o assassinato precedido de tortura dos três jovens supostamente envolvidos com o tráfico de drogas, por uma facção rival dominante em área vizinha, o Morro da Mineira.

Nada seria mais abominável que a bombástica revelação de que os rapazes trucidados foram entregues aos inimigos por um pelotão de soldados do Exército comandados por um tenente, sendo a ocorrência de conhecimento de um capitão, sob a estúpida alegação de insolente descaso à abordagem dos militares quando os jovens saíam de um baile funk. Algumas horas depois, os corpos varados de balas e com sinais evidentes de sevícias foram encontrados num lixão da periferia.

O que faziam os militares, àquela hora da madrugada, no Morro da Providência? A resposta é simples e mais uma vez nos faz submergir no charco de ilegalidades flagrantes perpetradas à larga no país do faz-de-conta. Os soldados garantiam a segurança da ordem pública na favela, enquanto operários da construção civil trabalhavam no projeto de recuperação de 758 residências – o Cimento Social – consistindo basicamente na pintura das fachadas e arrumação dos telhados. Aliás, uma iniciativa louvável a ser imitada por muitas outras cidades, não fosse o escandaloso desvio moral entranhado na personalidade de políticos carreiristas. O projeto faz parte da plataforma de campanha do bispo-senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) desde 2004, não por mera coincidência um dos candidatos à Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, que conseguiu plantar em vários morros os seus currais eleitorais. Não fosse suficiente, Crivella está filiado ao partido político influenciado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ao qual pertence também o vice-presidente José Alencar.

Para completar, o benemerente senador é o candidato preferido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu a incompreensível atitude de desfeitear a intenção do Partido dos Trabalhadores de lançar candidato próprio à sucessão do prefeito César Maia (DEM). Na verdade, uma segunda e definitiva bofetada, pois o governador Sergio Cabral Filho, que havia hipotecado apoio ao candidato petista, também o cancelara.

O faz-de-conta prosseguiu fagueiro. O Ministério das Cidades liberou recursos para custear a manicure do Morro da Providência, e o Ministério da Defesa ordenou ao Comando Militar do Leste que despachasse homens do Exército para zelar pela segurança pública (uma função policial), enquanto operários trabalhavam e cabos eleitorais de Crivella distribuíam em paz os santinhos do candidato. Tudo ia às mil maravilhas até a insana decisão do tenente Vinicius Ghidetti, que comandou a abordagem e supervisionou pessoalmente a entrega posterior dos três rapazes à gangue rival, que os executou com requintes de crueldade.

Como o crime bárbaro, ao que parece, não causou o menor embaraço na circunscrição de quaisquer autoridades da República, um braço da Justiça, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, por intermédio do juiz Fabio Uchoa Montenegro, responsável pelo setor de Fiscalização da Propaganda Eleitoral, em momento oportuno interrompeu o faz-de-conta mediante o embargo das obras no Morro da Providência, carimbando-as como propaganda eleitoral ilícita. Mais que depressa o Comando Militar do Leste aproveitou a deixa para determinar a retirada do pelotão que fazia a segurança do terreiro do piedoso bispo-senador.

Os onze militares envolvidos estão presos e a polícia tem a identidade dos assassinos. A Justiça vai cumprir seu papel, mas a sociedade exige explicações sobre a promiscuidade que apodrece as estruturas do Estado.

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