Depois de mais de duas décadas de um regime ditatorial, com muita luta, a sociedade brasileira conseguiu realizar uma Assembléia Nacional Constituinte, nascendo daí o que o Deputado Federal Ulysses Guimarães batizou de Constituição Cidadã, fruto de um trabalho sistematizado, uma experiência bem sucedida e sem parâmetro que se conheça.
O título de Constituição Cidadã decorreu da grande proteção que a Carta Magna ofereceu aos cidadãos, fruto do trauma sofrido pela sociedade brasileira nas mais duas décadas anteriores, onde os direitos humanos eram desrespeitados, até mesmo violentados.
Com efeito, a Constituição vigente protegeu de forma exemplar o povo brasileiro contra os desmandos do Estado e mesmo que se reconheça que ficou ela devendo em algum outro aspecto, não se pode ignorar a evolução que representou.
Se alguma crítica deve ser feita, esta deve ser dirigida contra as instituições que teriam a obrigação de aperfeiçoá-la e de regulamentá-la, nunca à própria Carta. Apenas, para ficar num exemplo, lembra-se que sua promulgação deu-se em outubro de 1.988 e até hoje não foi regulamentado o direito de greve dos servidores públicos, o que tem trazido muitos transtornos à sociedade, ao setor público e aos próprios servidores.
Admitir-se que seu aperfeiçoamento era e é uma necessidade, tudo bem, o que não se pode compreender, ou mesmo aceitar, é a fúria com que se têm lançado alguns setores, propondo emendas constitucionais as mais disparatadas e inconseqüentes possíveis.
A imprensa divulgou na semana passada que existem no Congresso Nacional 1.341 Projetos de Emendas Constitucionais a serem apreciadas e votadas por nossos diligentes, operosos, corretos e prestativos Senadores e Deputados Federais.
Registre-se que já foram promulgadas aproximadamente 60 Emendas Constitucionais e considerando que a Constituição conta com 250 artigos, mais 94 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, totalizando 344 artigos, sem esquecer os inúmeros parágrafos e incisos, a quantidade de PECs existentes é assustador.
Esse número chamou-me atenção e, apesar dos números não serem meu forte, resolvi fazer alguns cálculos, levando em consideração a quantidade de dias do ano, os sábados, domingos e feriados, as 2ª e 6ª feiras que o Congresso enforca semanalmente e os recessos do Congresso, não considerei as festas juninas do Nordeste, os feriados religiosos e as festividades do final de ano, desses cálculos resultou o quadro abaixo:
Anualmente, admitindo-se, com muita boa vontade, que o Congresso Nacional trabalha 234 dias por ano, não se considerando os demais assuntos a serem ali debatidos e se imaginando a aprovação de uma PEC por dia, seria necessário que nossas casas legislativas trabalhassem, aproximadamente, cinco anos e sete meses para cumprir a dura missão de apreciar e votar esses projetos.
Fica difícil imaginar-se que seria possível aprovar tantas PECs em um ano, porque daria 5,73 PECs por dia de trabalho do Congresso. E ali não se discute só PECs.
Essa elevada quantidade de Propostas traz à lembrança o juramento que é feito por autoridades eleitas ao assumirem seus cargos. Todas elas juram que, durante seus mandatos, cumprirão e respeitarão a Constituição. Juramento formal e sem qualquer efetividade, porque não será cumprido. No dia seguinte, tendo em vistas interesses pessoais ou de grupos, nem sempre confessáveis, os empossados já estarão propondo novas emendas. Como foi o caso da Emenda Constitucional n.º 16/1997, que permitiu a reeleição para os chefes dos poderes executivo (federal, estadual e municipal), todos lembram-se de como a proposição foi aprovada. Essa iniciativa brasileira, certamente, inspirou outros mandatários da América Latina a também alterarem as Constituições de seus países, permitindo reeleições, chegando-se ao exagero da Venezuela, onde Presidente Hugo Chaves parece não satisfeito e pretende sua permanência vitalícia no Poder.
Mesmo parecendo nada haver com o que estou tratando aqui, lembro a crise de Honduras, que já virou, uma novela, essa crise revelou um fato importante, o motivo que levou à derrubada do Presidente Zelaya. Segundo o noticiário, a motivação de sua queda teria sido a tentativa de alterar a Constituição para permitir sua reeleição. Com certeza, inspirou-se ele na conduta de outros dirigentes latino-americanos que já obtiveram essa possibilidade.
Contudo, esse desejo esbarrou na Constituição Hondurenha, cujo artigo 4.º estabelece que: “A forma de governo é republicana, democrática e representativa. Se exerce por três poderes: Legislativo, Executivo e Judicial, complementares e independentes e sem relações de subordinação.
A alternatividade no exercício da Presidência da República é obrigatória.
A infração desta norma constitui crime de traição à Pátria”.
E o artigo 374, por sua vez, veda a reforma da Constituição com o objetivo de alterar o artigo 4.º. Ora, se tentar reformar a Constituição é vedado e a infração à Carta é considerado crime de traição à Pátria, não se podia esperar outro desfecho. Afinal, o Presidente, porque foi eleito em eleições livres, não pode se considerar acima da Lei Maior de seu País. Aí criou-se o impasse que está difícil de ser resolvido.
Voltando-se à realidade brasileira. Diante da fúria com que são propostas emendas constitucionais no Brasil (o mesmo acontece com outros projetos de leis), talvez fosse salutar que nossa Lei Maior contasse com uma regra protetora idêntica à existente na Constituição de Honduras, principalmente, quando se identificasse que as propostas, como ocorre muitas vezes, não se destinam a beneficiar a sociedade e sim a atender interesses outros, nem sempre relevantes.
Deixo a idéia aos constitucionalistas, afinal, esta não é minha área de atuação. Atrevi-me a abordar o assunto na condição de cidadão assustado com a fúria legisferante do Congresso Nacional e não como advogado.
Antônio Dílson Pereira é advogado e professor da Unicuritiba.