Em pleno Século XXI é mais do que comum pensadores entenderem que a falência da empresa importa [necessariamente] a “falência”, a arrecadação ou mesmo a indisponibilidade de bens pessoais de seus sócios no âmbito específico de tal processo falencial. Primeiramente, a decisão que decreta a falência da sociedade empresária “pode” gerar efeitos jurídicos na esfera dos sócios de responsabilidade ilimitada, e o mais profundo efeito “pode” ser a falência deste. Mas, para que ocorra esta, faz-se necessário observar o princípio constitucional do devido processo legal, com a citação do sócio solidário para, querendo, se pronunciar [via defesa], a teor do art. 81 da Lei 11.101/05. Nessa esteira, dificilmente se vê uma empresa cujos sócios tenham sobre seus ombros responsabilidade solidária, ilimitada, em relação às obrigações da empresa para com terceiros. Em segundo lugar, conforme textualmente prevê a lei, em casos tais existência de sócio com responsabilidade ilimitada em relação às obrigações sociais caberá ao juiz determinar a citação deste a fim de que apresente defesa. Ocorrendo a falência da sociedade e não sendo acolhida a defesa [sob a forma de contestação] do sócio solidário o efeito jurídico em relação a ele é a arrecadação de bens que compõe seu patrimônio, arrecadação essas levada a efeito pelo administrador judicial. Não serão arrecadados os bens considerados como “absolutamente impenhoráveis”, a teor do art. 108, § 4.º da lei de regência. Portanto, nem sempre a falência da empresa implica a falência do sócio solidário. A falência do sócio solidário pode não ocorrer, e o mito de que “sócio solidário” responde, necessariamente, pela falência da empresa é um dos mitos que precisam ser afastados pelo hermeneuta. A falência da sociedade não importa a dos sócios, consoante adverte José da Silva Pacheco(1). Em se tratando de sociedade limitada [a mais comum no país], a responsabilidade de seus sócios será verificada em processo próprio [processo de conhecimento sob rito comum ordinário], perante o juízo falimentar, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo da empresa, consoante parte final do art. 82 da Lei 11.101/05. A denominada “ação de responsabilização” prescreverá em 2 [dois] anos a contar do trânsito em julgado da sentença que encerrar a falência. Ainda, segundo o parágrafo segundo do mesmo art. 82, poderá o juiz de ofício ou mediante requerimento próprio determinar a indisponibilidade de bens particulares dos sócios, desde que em quantidade compatível com o dano alegado, até o julgamento da referida ação.

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Como se vem reiteradamente escrevendo, a Lei 11.101/05 não tem boa técnica [até nem poder-se-ia exigir muito do legislador ordinário, cujo saber jurídico está aquém daquele de 1945], é falha e precisa ser urgentemente revista.

Primeiramente, o artigo 50, § 1.º do Dec.-Lei 7.661/45 não foi integralmente repisado e não menos certo que tal dispositivo deixou de estabelecer questões relativas ao prazo prescricional para ajuizamento de ação de integralização de capital social. O artigo 82 da Lei 11.101/05, muito embora tenha dado uma amplitude maior quanto a responsabilização de sócios [incluída a questão relativa a integralização do capital social] estabelece o prazo [fatal] de 2 [dois] anos contados do trânsito em julgado da sentença que encerra a falência para ajuizamento de medidas. Ora, qual o sentido prático de se estabelecer tal prazo prescricional pós-falência? Nenhum. Encerrada a falência desaparece a massa falida e não mais poder-se-á falar em juízo universal, que pela lei atrairia a competência para tal demanda. Transitada em julgado a sentença que declara encerrada a falência automaticamente afasta-se qualquer possibilidade de ajuizamento de ação perante o juízo pelo qual tramitava esta mesma falência. Mais do que isso, qual seria o sentido prático de ajuizar ação em face dos incorporadores após o encerramento da falência? Nenhum. Evidentemente que a medida judicial deverá ser distribuída enquanto perdurar o processo falimentar. Prosseguindo, de todo evidente, e aqui, só aqui, cabe uma interpretação gramatical da letra do §2.º do art. 82 da lei falencial, o juiz poderá determinar a indisponibilidade de bens dos incorporadores tão-somente na seara própria, ou seja, na ação que visa discutir a responsabilidade pessoal destes, ou em medida cautelar [preparatória ou incidental], e jamais no âmbito da falência propriamente dita. Além disso, tal texto de lei merece redobrada atenção do intérprete, a fim de que não crie prejuízo ao réu na ação e se observe o princípio da proporcionalidade. Com efeito, a “quantidade compatível” de bens certamente é aquela declarada pelo autor em sua inicial, o que pode, necessariamente, não corresponder à realidade. Portanto, a lei falimentar inspira cuidados no que diz com sua interpretação.

E qual a amplitude da responsabilidade do sócio pertencente a uma sociedade limitada quando for decretada a falência desta? Ora, poderá o sócio responder pessoalmente quando deixar de integralizar total ou parcialmente sua parte no capital social(2), ou quando participar de deliberação que infrinja os termos do contrato ou da lei [art. 1080 do Código Civil](3). Também poderá ser acionado judicialmente quando, mesmo integralizando sua participação, outro componente não se comporte da mesma forma. É o que diz o art. 1052 do Código Civil. Existe, pois, a responsabilidade solidária dos componentes da sociedade quanto ao montante do capital social [apenas] subscrito. Caso o sócio, especialmente o quotista, tenha integralizado sua participação societária, cumprindo com suas obrigações perante a sociedade, e não delibere contra o contrato ou a lei; caso os demais sócios também tenham cumprido sua obrigação – a integralização do capital social -, não poderá esse mesmo sócio quotista ser instado a responder [com seus bens pessoais] pela falência da empresa, efetivamente. O sócio da empresa falida não é falido, e esse é ainda um mito imperante na mente do exegeta; o sócio da falida tem obrigações [deveres] a cumprir no processo falimentar, a teor do art. 104 da Lei 11.101/05, mas não tem seus bens arrecadados, e muito menos poderá ser responsabilizado pessoalmente sem que exista ação, e nela seja observado o princípio do devido processo legal. Falar em “falência” de sócio ou mesmo tornar indisponíveis seus bens pessoais sem que exista processo próprio [e esse “processo próprio” obviamente não é a falência], é deixar de interpretar a lei falencial sob os enfoques teleológico e sistemático; é deixar de observar o catálogo principiológico constante da Carta Política, é contribuir para que não se observe o princípio da livre iniciativa; é contribuir para a derrocada do empreendimento, pois certamente ninguém terá interesse em participar de qualquer sociedade empresária.

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Notas:

(1) Processo de Falência e Concordata. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 153.
(2) E a propósito, em relação a “garantia” do capital social, quanto aos credores, ver interessante escrito de Fábio Tokars A Falsa Função de Garantia do Capital Social de Sociedades Limitadas pub. O Estado do Paraná, Caderno Direito e Justiça, de 5/7/2009, p. 8.
(3) Neste caso se trata de responsabilidade por ato ilícito.

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Carlos Roberto Claro é advogado; professor [Adjunto I] de Direito Comercial, no Unicuritiba; professor na pós-graduação [lato sensu] de Direito Empresarial, da mesma instituição de ensino; mestre em Direito [área de concentração: [Direito Empresarial e Cidadania] pelo Unicuritiba e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – EUA]