Evolução do Instituto
A história do factoring confunde-se com a história do próprio comércio. O primeiro registro documentado da utilização generalizada de operações de factoring ocorreu nas colônias americanas, antes da revolução. Produtos como algodão, peles e madeira eram enviados das colônias para serem vendidos na Inglaterra e tinham de ser transportados por veleiros de madeira até a metrópole. Os pobres colonos simplesmente não teriam condições de esperar que os navios atravessassem duas vezes o oceano para entregar a mercadoria e lhes trazer de volta o dinheiro. Surgiu então a figura do factor, um agente mercantil que vendia mercadorias a terceiros mediante comissão, custodiando as mercadorias e prestando contas aos seus proprietários.
Com o tempo, estes agentes passaram a antecipar o pagamento das mercadorias aos seus fornecedores, cobrando posteriormente dos colonizadores. Assim, enquanto o barco atravessava o oceano, os colonos podiam continuar com seus negócios e sobreviver, livres dos ônus da espera. Os riscos pelo não pagamento eram assumidos por estes agentes, que na verdade funcionavam como intermediadores, possuindo como clientes tanto os compradores como os vendedores. A relação era, portanto, regida muito mais pela confiança do que propriamente por cláusulas contratuais ou estabelecimento de garantias.
Somente após a Segunda Guerra é que se vislumbrou o potencial das factorings em outras formas de negócio, essencialmente na compra e venda do faturamento, pois os bancos passaram a sofrer forte regulamentação, o que dificultava o acesso ao crédito. As empresas precisavam encontrar outras formas mais ágeis de obter financiamentos, para lhes garantir – ou não impedir – o desenvolvimento e o crescimento de seus negócios. As factorings se apresentaram como uma solução viável e eficaz.
Para se adaptar às novas realidades e necessidades, os elementos e premissas do factoring colonial foram, naturalmente, sofrendo mutações com o passar dos anos. Na verdade, em seu contexto moderno, as factorings possuem uma estrutura multidisciplinar, portanto, dependente de outros institutos de direito civil e comercial.
Da própria definição aprovada Convenção Diplomática de Ottawa, em maio de 1988, da qual participou o Brasil com mais 52 nações, é possível extrair e concluir que as atividades praticadas hodiernamente pelas Sociedades de Fomento Mercantil compreendem, além da prestação de serviços, a compra, à vista, total ou parcial, com ou sem direito de regresso, de crédito resultantes de vendas mercantis ou de prestação de serviços, realizadas a prazo, no mercado nacional ou internacional, pelas empresas contratantes ou pessoas físicas a elas equiparadas.
As Sociedades de Fomento Mercantil ou Factorings, contudo, ainda não são bem compreendidas por boa parte da doutrina e por alguns tribunais do país. Diferentemente dos países desenvolvidos, onde tais empresas são respeitadas e consideradas fundamentais para a economia, aqui parece terem sido estigmatizadas.
Pode-se afirmar que a razão desta postura deve-se ao próprio histórico das factorings no Brasil, cujas atividades a princípio foram confundidas com as praticadas exclusivamente por instituições financeiras. Pensava-se tratar-se de uma operação de desconto bancário disfarçada, e que, portanto, deveria ser coibida. E de fato foi, através da Circular n.º 703/82 do Banco Central. Norma esta só revogada em 1988 pela Circular 1.359, editada pela própria diretoria do Banco Central. A edição desta nova Circular, revogando a anterior, atendeu à decisão final do Tribunal Federal de Recursos, que consagrou o entendimento de que as atividades praticadas pelas factorings são essencialmente mercantis e perfeitamente legais. Foi quando enfim se permitiu o acolhimento dos registros e arquivamentos dos atos constitutivos das sociedades de fomento mercantil perante as Juntas Comerciais.
Já são mais de duas décadas desde tal liberação, mas a atividade continua refém da ignorância, fruto de pura discriminação, o que acaba por dar margem a entendimentos distorcidos e bastante divorciados da realidade. O tema é de suma importância e já passou a hora de ser tratado com verdadeira honestidade intelectual.
Factoring não é Instituição Financeira
As Factorings possuem como atividade principal a compra do faturamento do pequeno e médio empresário, mediante um preço livremente pactuado pelas partes, para o fim de fomentar a atividade da empresa-cliente e garantir a sua sobrevivência no mercado competitivo. Em sua modalidade convencional, verifica-se simples compra e venda de créditos (direitos), estando de um lado a empresa de factoring (compradora) e, de outro, o faturizado (vendedor).
Opera-se, através da cessão civil e ou pelo endosso, a alienação de coisas móveis (direitos de obrigações de credito), representadas por títulos de crédito, de acordo com as normas no contrato de fomento mercantil. Não se trata, portanto, operação de crédito, onde há financiamento ou adiantamento de recursos, mas compra e venda mercantil à vista. Ou seja, as atividades não se confundem com as práticas realizadas por banco e instituições financeiras, onde a captação de recursos é feita junto à poupança pública, intermediando créditos, com estrutura típica e sujeita à legislação bancária específica, submetidas a autorizarão das autoridades monetárias.
A empresa de factoring vale-se de seus próprios recursos, sem por em risco a poupança pública. O ganho é obtido por intermédio de um preço, denominado fator de compra, conhecido popularmente como deságio. Isto significa que não são adiantados valores para posteriormente serem restituídos. Portanto, não há mútuo, nem juros remuneratórios.
No financiamento bancário, seja qual for a modalidade, a remuneração advém dos juros cobrados pelo tempo de utilização dos recursos mutuados. No desconto, por exemplo, configura-se um empréstimo em relação à transferência do título, com incidência de juros e taxas pelo tempo compreendido entre a data do recebimento do valor e a do vencimento do título.
Tão clara é a distinção que sequer há exigência ou necessidade de autorização do Banco Central para o funcionamento destas sociedades. Basta o arquivamento dos atos constitutivos na Junta Comercial, ficha cadastral limpa, capital e vivência no mercado. O que controla, pois, este setor, é a livre concorrência, somente sobrevivendo aquelas empresas que operam com seriedade, lisura e eficiência.
Factoring e Banco utilizam abordagens muito diferentes quando se avalia um potencial cliente. O banco preocupa-se com ratios, fluxo de caixa, eficiência operacional, liquidez interna, garantia de crédito e outras questões, de forma que o processo de aprovação depende da análise de uma quantidade imensa de documentos. Já a factoring leva em consideração tão somente a qualidade dos recebíveis de uma empresa, o que permite a aprovação do processo em menos de cinco dias. O “cliente ideal” para a factoring é o pequeno e médio empresário que esteja experimentando um crescimento rápido e possua devedores qualificados. Assim, a empresa cliente pode vender seus créditos tão logo os recebíveis sejam gerados, sem acrescentar a responsabilidade de um empréstimo.
A Legislação e a Possibilidade de Responsabilização Solidária Do Faturaizado (Cláusula Pro Solvendo)
As operações das Sociedades de Fomento Mercantil são constitucionalmente resguardadas (art. 5º, incisos II e XIII; e artigo 170, § único) e são todas realizadas por meio de institutos consagrados do ordenamento jurídico brasileiro, perfeitamente disciplinados pelo Código Civil e pelas normas comercias, notadamente a Lei Uniforme de Genebra, a Lei das Duplicatas e a Lei do Cheque.
Não se vislumbraria, portanto, nenhuma necessidade de regulação do setor ou mesmo de tipificação do contrato de fomento mercantil por lei específica, mesmo porque é lícito às partes estipular contratos atípicos (Código Civil, art. 422). Se não há uma norma pronta para determinada hipótese, ou ausência de legislação sobre determinado instituto, cabe ao jurisconsulto extraí-la do ordenamento jurídico, não se prendendo a uma disposição isolada ou a opiniões estáticas.
Todavia, muito embora existam decisões judiciais abalizadas e se perceba uma constante evolução na doutrina sobre o tema, os aplicadores do direito, na maior parte das vezes, fazem tábula rasa da legislação existente e dos consagrados institutos mencionados. Os entendimentos são precários e fundados em premissas equivocadas ou limitadas.
Um princípio básico que norteia qualquer sociedade livre e civilizada é o de se permitir tudo o que não é expressamente proibido por lei. No Brasil, ao contrário, proíbe-se tudo o que não é expressamente permitido. Uma inversão total de princípios inadmissível em qualquer Estado de Direito. Aqui se vislumbra um exemplo perfeito. A esperança dos empresários do setor contra este cenário de incerteza e de insegurança jurídica repousa na expectativa de aprovação de um projeto de lei em trâmite no Senado, que na verdade apenas se prestará a autorizar expressamente aquilo que já é permitido, ou não proibido. Trata-se do projeto de lei nº 13/2007, já com parecer favorável da Comissão de Constituição de Justiça e da Comissão de Assuntos e Econômicos.
Em última instância, a lei vem para pacificar a tumultuada jurisprudência e entendimentos doutrinários acerca da validade da cláusula pro solvendo nos contratos de fomento mercantil, bem como da possibilidade da contratação de garantias reais e fidejussórias, o que vem sendo repudiado de forma injustificável.A jurisprudência e doutrina que defendem a proibição de tais cláusulas fundam-se numa única premissa: a de que o risco é ínsito à operação de factoring e que a ausência de tal elemento descaracterizaria sua natureza jurídica. O argumento é limitado, pois preso às origens históricas das Factorings, ignorando a sua evolução e os institutos de direito comercial e civil que foram sendo agregados.
O vendedor do faturamento pode se responsabilizar ou não pela solvência do emissor do título negociado. A operação de factoring sempre terá um grau de risco como em qualquer negociação comercial, mas é equivocado o pensamento de que seja componente preponderante e sine qua non. Como já se enfatizou acima, tal característica era uma condição que se observava no comércio colonial americano, devido às circunstâncias e à praxe da época, num cenário completamente distinto, em que os produtos cruzavam o oceano em caravelas de madeira e onde o factor funcionava nas duas pontas, como agente de comércio de confiança.
Não se discute que as factorings devam conhecer o mercado e possuam condições de investigar a qualidade dos créditos que compram, mas nem sempre podem contar com informações privilegiadas ou imprevisíveis, diante da velocidade com que as operações são realizadas em um mundo de comunicações instantâneas. Antônio Carlos Donini, em artigo publicado sobre os projetos de lei em trâmite no Congresso no site revista do factoring, ressalva que, como a legislação vigente permite ao sacador-faturizado a emissão unilateral da duplicata, torna-se quase impossível ao factor ter acesso aos livros fiscais e contábeis da empresa faturizada para assegurar-se da legitimidade da duplicata sacada. E, mesmo assim, continua o autor, as factorings ainda estariam sujeitas ao “alegado vício” apontado pelo sacado, muitas vezes em conluio com o sacador. Há ainda que se considerar as enormes distâncias territorias, culturas e filosofias regionais num país de dimensões continentais, o que aumenta o risco de solvabilidade.
Na doutrina e jurisprudência não há mais controvérsias quanto à possibilidade do direito de regresso quando se verifica a existência de vícios do crédito negociado. A discussão diz respeito à validade de se convencionar a responsabilidade solidária pela solvência do crédito (cláusula pro solvendo), bem como a fixação de garantias nesse sentido.
Sob o prisma da boa-fé, não há diferença entre aquele que negocia um crédito frio para o que vende um título cuja possibilidade de satisfação é sabidamente remota, porque o devedor é insolvente ou está na iminência de assim se tornar. A coisa comprada, de uma forma ou de outra, é inexistente, impossibilitando-se o aperfeiçoamento do ato jurídico da compra e venda, por lhe faltar um dos elementos essenciais.
No aspecto legal, não há legislação que impeça seja estabelecido nos contratos de fomento mercantil a modalidade pro solvendo e a convenção de garantias. Muito pelo contrário, a legislação assim permite, pois se o contrato restringe-se à compra de créditos, é regido pelas normas da CESSÃO CIVIL, bem como pelas conseqüências do ENDOSSO.
O valor e o ganho sempre serão obtidos diante do grau de incerteza do negócio. Consigne-se que o Código CIVIL no seu art. 296 prevê expressamente que, salvo estipulação em contrario, o cedente não responde pela solvência do devedor. Obviamente, isto significa que a lei expressamente autoriza que a faturizada responda pela solvência do devedor se assim tiver sido convencionado pelas partes, não havendo razão plausível de tal norma nos contratos de fomento mercantil.
A jurisprudência mais atualizada vem caminhando para a mesma conclusão, conforme se observa dos mais recentes arestos colhidos juntos ao STJ, conforme se extrai da ementa relatada pelo eminente Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, concluindo que “o risco assumido pelo faturizador é inerente à atividade por ele desenvolvida, ressalvada a hipótese de ajustes diversos no contrato firmado entres as partes”. (Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 992.421/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, julgado em 21/08/2008, DJe 12/12/2008)
Seja como for, de acordo com a Circular BC n.° 1359/88, com art. 28, § 1.°, alínea c-4 da Lei n.° 8.981/95, ratificado pelas Leis 9.249/1995, 9.430/96 e 9.532/97, bem como de acordo com a Resolução do Conselho Monetário Nacional CMN n.° 2.144/95 e com o Ato Declaratório n.° 51/94 da Secretaria da Receita Federal, as atividades das sociedades de fomento mercantil – factoring – são regidas pelas normas do instituto de direito mercantil. Perfeitamente aplicável, portanto, conforme já salientado acima, toda a legislação cambial pertinente.
Assim, a responsabilidade solidária também se observa quando os títulos são endossados, já tendo sido chancelado pelo STJ o entendimento doutrinário segundo o qual o endossante (faturizado) garante o pagamento à endossatária (faturizada), conforme a ementa abaixo, também relatada pelo Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS:
CHEQUE – ENDOSSO FACTORING – RESPONSABILIDADE DA ENDOSSANTE-FATURIZADA PELO PAGAMENTO.
Salvo estipulação em contrario expressa na cártula, a endossante-faturizada garante o pagamento do cheque a endossatária-faturizadora (Lei do Cheque, Art. 21)”. (REsp 820.672/DF, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/03/2008, DJe 01/04/2008).
O julgamento foi unânime e bastante esclarecedor no que diz respeito ao fomento mercantil no Brasil, desmistificando o conceito e a natureza do instituto à luz do ordenamento jurídico pátrio. Em síntese, o Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS nos brinda com as seguintes conclusões em seu voto: a) as sociedades empresarias de fomento mercantil estão sujeitas aos mesmos direitos e obrigações que qualquer outra sociedade que explore outra atividade empresarial, não havendo razão para distinção; b) não existem razões justificáveis para as limitações feitas às factorings, pois a Lei não as faz; c) trata-se de negócio licito, mesmo porque não é proibido; d) a lei expressamente coloca o endossante na condição de garante do pagamento do valor estampado na cártula, não havendo, ao contrário, lei que impute tal risco ao faturizador; c) a exclusão da garantia do endosso às sociedades de fomento mercantil é incompatível com os princípios constitucionais da isonomia, da livre iniciativa e da legalidade; d) o secular e internacional instituto do endosso não pode ser abolido ou mitigado por construção doutrinaria sem respaldo legal; e) o faturizador compra o titulo de crédito com abatimento pelo valor de face, sendo esse justamente o lucro perseguido nessa empresa, o que não pode ser discriminado pelos Tribunais; e f) que não se pode perder de vista que a livre iniciativa é fundamento da República Federativa do Brasil (CF, Art. 1.°, IV).
Ou seja, o título de crédito com cláusula não à ordem transfere-se por cessão civil. Se o título, porém, é à ordem, sua circulação é regida pelo direito cambiário, através do endosso, permitindo que ele se purifique de eventuais vícios que o maculem. A este respeito, colha-se a lição de FÁBIO ULHOA COELHO: “É importante ressaltar que a cláusula não à ordem não impede, propriamente, a circulação do título. O que ela opera é a mudança do regime jurídico aplicável à circulação. Se o título não contempla essa cláusula, sua circulação é regida pelo direito cambiário; se a contempla, a circulação terá tratamento do direito civil. Em outros termos, enquanto o título à ordem se transfere pelo endosso, o não à ordem transfere-se por cessão civil de crédito. (Curso de direito comercial, 6.ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v. 1.º, p. 406)”
Ainda sobre as características cambiais da duplicata eminente Ministro EDUARDO RIBEIRO, assim proclamou: “O primeiro equivoco em que, a propósito, costuma-se incidir, esta em supor que a circunstancia da duplicata ter sido irregularmente emitida faz com que seja nula. Sua validade depende do atendimento de requisitos formais. Se faltar-lhe causa, isto poderá ser arguido entre as partes originais. Entretanto, uma vez endossada, aplicam-se-lhe os princípios pertinentes às relações cambiais. O endossatário de boa fé exerce os direitos emergentes do titulo, nada importante decorreu ou não de compra e venda e, menos ainda, que o contrato haja sido ou não regularmente adimplido (Resp. n° 2.166 – RS).
Contrato Atípico
Também sob outro ponto de vista, as partes têm, em razão do principio da autonomia da vontade ampla liberdade de contratar, sem qualquer ingerência do poder público. Podem, portanto, ajustar contratos típicos ou atípicos, também reconhecidos como inominados, especificando as condições que melhor atendam as suas aspirações. É o que dispõe o art. 425 do Código Civil:
Art. 425. E lícito às partes estipular contratos atípicos observadas as normas gerais fixadas neste Código.
A validade do contrato se atém apenas à capacidade das partes para consentir, da licitude e possibilidade de seu objeto, adquirindo forma prescrita ou não vedada em lei. A esse respeito, pontua LUIZ LEMOS LEITE, pontua que “em matéria de factoring não existe legislação que proíba qualquer tipo desse negocio. Evidentemente prevalecem as regras do direito cambiário em que o endossante é garante do aceite e do pagamento”. (FACTORING NO BRASIL/LUIZ LEMOS LEITE – 11.ª ed. – São Paulo, Atlas, 2007, pag. 222).
Estipular a obrigatoriedade da cláusula pro soluto constituiria flagrante inconstitucionalidade, por violação do art. 5°, inciso II, da Constituição Federal que estabelece que “ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa sena° em virtude da lei”.
Boa-Fé Objetiva e o Princípio da Vedação ao Venire Contra Factum Próprium
Não bastasse, o que se observa nas discussões judiciais é uma nítida violação do princípio da boa-fé, tanto objetiva como subjetiva, porque as empresas que contratam as factorings assinam contrato com cláusula pro solvendo por um deságio menor, emitem e endossam os títulos em preto, avalizam, confessam e estabelecem toda sorte de garantias, para depois tentar judicialmente legitimar um verdadeiro calote, sob a alegação torpe de que toda a contratação é nula e que os institutos em questão não são aplicáveis. Há, portanto, tanto uma violação da confiança depositada, como a frustração de um dever de conduta.
Outra projeção inequívoca de tais regras se expressa como o principio que inadmite o venire contra factum proprium. Ou seja, o direito não admite o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. O Código Civil de 1916 já procurava evitar expressamente que o comportamento contraditório de um dos contratantes viesse a frustrar a expectativa e confiança legitima do outro. Trata-se literalmente do que dispõe o art. 175 do Código Civil atual (art, 151, no de Beviláqcua), assim estatuído:
Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de contra ele dispusesse o devedor.
O devedor que voluntariamente inicia a execução do negócio em seu entender anulável, não poderá mais invocar a sua nulidade em proveito próprio. O cumprimento voluntário e consciente do negócio “anulável” importa em renúncia de todas as ações ou exceções que poderia eventualmente invocar, pois se opta por seguir certa conduta não pode, em momento posterior, valer-se de comportamento oposto ou contraditório.
Inaplicabilidade da Lei de Usura e do Código de Defesa do Consumidor
Também não são incomuns às invocações falaciosas da Lei de Usura, do Código do Consumidor, e o argumento de que se trata de contrato de adesão. Exceções incabíveis normalmente fundadas na cantilena habitual de hipossuficiência do devedor oprimido. Ora, quem busca crédito antecipado obviamente negocia o valor da remuneração exigida pela factoring, sendo o que basta para rechaçar a idéia de que o cliente é forçado a aderir a um contrato pré-estabelecido e inflexível.
Assim, como a relação estabelecida entre a factoring e a empresa-cliente é de natureza eminentemente mercantil, completamente divorciada das atividades exercidas pelo Sistema Financeiro Nacional, tem-se, como conclusão lógica, a impossibilidade de aplicação do CÓDIGO DO CONSUMIDOR, tampouco da LEI DE USURA.
No que diz respeito à inaplicabilidade da Lei Consumerista, há jurisprudência profusa sobre a questão, endossando entendimento doutrinário uniforme a respeito, no sentido de que o faturizado não figura como adquirente ou usuário de um produto, mas como cedente de direitos, como um vendedor. Por cuidar-se de pessoa jurídica, ha uma presunção iuris tantum de que o faturizado utilize o crédito em sua atividade empresarial, seja para aumentar seu capital de giro, seja para efetuar pagamento a fornecedores. Enfim, emprega o dinheiro em seu empreendimento, o que o desfigura da concepção consumerista de destinatário final.
O Código de Defesa do Consumidor define consumidor, em seu artigo 2°, como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Nas operações de fomento mercantil, o cliente não é destinatário final dos serviços prestados pela factoring, simplesmente porque aplica estes serviços no seu negócio. O dinheiro fornecido pelas factorings em decorrência da compra e venda de direitos creditórios, assim como os serviços prestados, são utilizados para fomentar os negócios da faturizada e viabilizar suas vendas. Ou seja, tudo que a factoring oferece é utilizado para gerar outros bens que serão vendidos. Portanto, a empresa-cliente aplica os recursos na produção de bens destinados a terceiros, não sendo, por curial, destinatário final. Com efeito, não existe relação de consumo.
Já quanto à Lei de Usura, não se desconhece que há entendimento jurisprudencial pela aplicação às operações de faturização, sob o argumento de que se assemelha à atividade bancária. Tal orientação, contudo, somente deve ser aplicada quando o ajuste firmado pela faturizadora se apresentar como atividade bancaria disfarçada, a exemplo de quando esta concede mútuos feneraticios. Ocorre, contudo, que nos contratos de factoring, a rigor, não se aplicam quaisquer juros, mas o “fator de compra”, o qual constitui a remuneração da faturizadora e consiste na diferença entre o preço de compra e o valor nominal dos títulos. Um deságio, portanto, que em muito se distancia da idéia de juros como remuneração do capital. Assim, ainda que tal diferença seja calculada em percentuais, não pode ser confundida com juros.
Conclusão
Feitas todas estas distinções e ponderações, impõe-se concluir que tanto a inclusão de cláusula pro solvendo como a prestação de garantias no contrato de factoring são perfeitamente permitidas pelo ordenamento jurídico, além de possibilitar a redução dos valores cobrados pelo fator nas operações, em função da diminuição do risco associado ao faturizado.
ANTÔNIO CARLOS DONINI, no mesmo artigo mencionado acima, demonstra que nas legislações da Espanha, Portugal e Itália, onde a atividade de factoring é praticada de forma muito similar ao Brasil, permitem, opcionalmente, o direito de regresso em face da solvência do devedor.
Obrigar a condição pro soluto, portanto, apenas dificulta a impulsão da atividade dos pequenos e médios empresários, por elevar o custo do crédito, além de contrariar a prática de mercado internacional, restringir o principio da autonomia da vontade e ao princípio constitucional da livre iniciativa..
Os maiores prejudicados neste cenário de ignorância e erro são as empresas de factoring que atuam com seriedade no mercado. Já o mais beneficiado é aquele que, de má-fé, vem depois tentar judicialmente pleitear a nulidade de todas as cláusulas que livremente pactuou e atos que conscientemente praticou.
Não se pode conceber que advogados, juízes e doutrinadores se prendam a conceitos ultrapassados que os distanciam da dinâmica da vida, da evolução dos institutos e das necessidades de uma sociedade civilizada e moderna. Toda esta discussão em torno da admissão da cláusula pro solvendo, ou fixação de garantias nos contratos de fomento mercantil nem deveria existir e chega a assustar o fato de que seja necessário aguardar a aprovação de uma lei para ensinar os aplicadores da lei a interpretar o direito.
Nos dizeres de CARLOS MAXIMILIANO, o Direito não pode isolar-se do ambiente em que vigora, deixando de atender às outras manifestações da vida social e econômica (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 15.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995).
Os profissionais do direito devem – ou deveriam – possuir a devida capacidade de abstração e distinção de conceitos, incumbidos que são de interpretar e aplicar o direito. Precisam saber procurar os elementos capazes de suplantar as dúvidas, compreender o sentido dos princípios, a natureza e finalidade dos institutos, distingui-los e adequá-los à realidade concreta, sempre atento aos fenômenos sociais e à contínua evolução das relações, conceitos e valores.
Nesta linha de digressão, recorra-se ao brilhantismo do famoso jurista italiano FRANCESCO FERRARA: “Se a ciência não quer perder-se numa lógica abstrata e numa jurisprudência de conceitos, tão asperamente fustigada por IHERING, não deve encerrar-se num magnífico e solitário castelo de marfim, distante dos rumores do dia, mas tem de entrar na vida, seguir-lhe os movimentos e as aspirações, perscrutar as necessidades que a fazem pulsar, sempre consciente da mónita que não é a vida que deve adaptar-se ao direito, mas sim o direito à vida” (Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel A. Domingues de Andrade, 4ª Edição, Armênio Amado – Editor, Sucessor Coimbra – 1987, pág. 184).
Daniel Marques Virmond é advogado, sócio do Escritório Ling & Virmond Advogados Associados.