A falência absoluta do Estado e das suas instituições está mais do que evidenciada no caso de F.R.A., 14 anos, com 17 “prisões”. Nada de positivo foi feito para ele, sua família ou seu entorno social. F.R.A. foi “preso” (apreendido) pela primeira vez aos nove anos de idade, depois de ter furtado um veículo.

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Dos 10 aos 11 anos foi “preso” mais sete vezes por furtar outros veículos, dirigi-los ou por danos. Com doze anos de idade foi “preso” mais três vezes (furtos de carros).

Com treze anos de idade, tendo sido “preso” mais uma vez, passou três meses na Fundação Casa (local que abriga menores infratores). Aos catorze anos de idade (janeiro de 2011) acabou sendo “preso” pela décima sétima vez.

Incontáveis abordagens poderiam ter sido feitas pela mídia em torno desse emblemático caso: falência das instituições públicas, nível de desestruturação familiar, precariedade da educação no nosso país, causas da exclusão social, segregacionismo brasileiro, sociedade de consumo etc. O que, no entanto, foi destacado pela mídia?

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O primeiro delito foi cometido aos nove anos, o garoto mordeu a mão do delegado, a família desistiu dele, o Judiciário já determinou o seu acompanhamento psicológico mas nada de concreto aconteceu, determinou que ele fosse à escola, que se reapresentasse ao juízo, a família precisa ser tratada, a criança deve ser tirada da guarda dos pais, briga do pai com o filho, vergonha para a Justiça que não cuidou bem do caso, falta de exploração do talento do garoto, temor de que ele vai começar a usar arma de fogo, receio de que ele vai ser assassinado e um delegado de polícia repressivamente disse: “Só uma longa internação poderá ressocializá-lo. Se ele for solto, vai continuar furtando”.

O que F.R.A. precisa é de escola, não de presídio. É de educação, não de repressão. Socialização, não marginalização. Cadê a escola obrigatória de período integral e lúdica para esses casos críticos?

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São Paulo acaba de anunciar a construção de mais 46 presídios (O Estado de S. Paulo), mas nunca edificou uma só escola de período integral para adolescentes criticamente problemáticos.

De outro lado, eu gostaria de convidar você, caro leitor, a pensar sobre como a mídia se posiciona frente ao fato da delinquência urbana. Que a delinquência urbana seja um fato isso é indiscutível.

Quase 80% da população mundial hoje vivem em conglomerados urbanos. Logo, parece muito natural que a criminalidade tenha maior concentração nesses locais. Que essa criminalidade seja também muito preocupante não há nenhuma dúvida, porque ela gera danos, medo, insegurança, intranquilidade, vingança etc.

Quem retrata e visibiliza essa violência urbana é a mídia, por todos os meios de comunicação de massa. Há que se distinguir, assim, o fato da delinquência urbana (de um lado) da sua projeção midiática (de outro). Uma coisa é o fato (entendido em sua totalidade). Outra coisa é sua projeção, que não é isenta, neutra.

A mídia projeta a criminalidade para a população (que, em geral, conta com pouco senso crítico) com várias finalidades (lucros, firmamento no mercado, busca de solução para o problema etc.).

Mas de que forma ela projeta o fato? De forma espetacular, dramática, seletiva, construtiva (da realidade), escandalosa (assim é a regra do mercado). Não é qualquer imagem (nem todas as imagens) que vão para o ar.

A mídia constrói um discurso em cima da realidade. Ela não projeta a realidade, sim, uma determinada versão dessa realidade. Aliás, uma versão bastante reduzida e comprimida.

A imagem não está enquadrada com o problema. A imagem, ademais, é inimiga da abstração. O que podemos ver na televisão (especialmente) é o que comove os sentimentos e as emoções (assassinatos, violência etc.)(1).

Do exposto se conclui: uma coi,sa é o fato (globalmente considerado), outra bem distinta é a projeção midiática do fato, que só gera grande interesse se dotado de espetacularização, escandalização, dramatização.

E nesse ponto conta a mídia com um aliado forte: o sentimento passional de vingança gerado pelo crime (Durkheim). Não é difícil dramatizar a violência (o fato) quando já existe uma predisposição da população (da opinião pública) para isso.

Logo em seguida à projeção do fato vem o clamor público (por castigo, punição). Toda a engrenagem do populismo penal reside nessa lógica. A resposta política (do legislador e dos gestores da coisa pública) não é dada ao fato, sim, à projeção midiática do fato (Zaffaroni). Em quase todas as justificativas de novas leis os parlamentares invocam o clamor midiático (Luís Wanderley Gazoto).

Nem a mídia nem a opinião pública (que se forma depois da intervenção dela) nem muito menos os políticos (legisladores e gestores) reagem contra o fato em sua totalidade.

A reação, já desde a mediatização da mídia, faz um corte (profundo) na realidade. Não busca suas causas. Não trabalha o lado humano denso (e complexo) do problema.

Não contextualiza o fato com produção social desse fato, com o sistema social vigente, com a política econômica adotada, com as desigualdades do país, com a desestruturação das famílias, com os deficientes processos de socialização, com a perda dos valores éticos e morais etc.

O que há de menos espetacular mas de mais profundo (em termos humanísticos) é ignorado completamente (pela mídia, pela opinião pública, pelos políticos). Superficialidade, fragmentariedade e lacunosidade são as características que, em geral, acompanham a espetacularização midiática.

Nota:

(1) Cf. SARTORI, Giovanni, Homo Videns La sociedad teledirigida, Madrid: Santillana, 2008, p. 88.

Luiz Flávio Gomes
é jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Blog: http://www.blogdolfg.com.br/ www.blogdolfg.com.br. Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG.