Para que eutanásia (a morte) não seja arbitrária, deve ser cercada de algumas cautelas: (a) que o paciente esteja padecendo ?um sofrimento irremediável e insuportável?; (b) que o paciente seja informado do seu estado (terminal, leia-se: não há solução médica razoável para o caso) e das perspectivas do tratamento; (c) deve haver pedido por escrito, voluntário e lúcido; (d) o médico deve ouvir da opinião de um colega (ou dois), antes de cumprir o pedido. Também é muito importante a posição da família, sobretudo quando o paciente já perdeu a consciência.
Essas rígidas exigências revelam bom senso e razoabilidade e afastam, definitivamente, o argumento de que a permissão da eutanásia poderia ter como conseqüência verdadeiros ?homicídios?, particularmente contra pobres. Todo o contrário, o pobre, que hoje muitas vezes é vítima de mortes arbitrárias, passaria a ter o mesmo direito dos ricos (que já desfrutam, ainda que na clandestinidade, da chamada ?morte digna?). Fazendo um paralelo com o aborto, que deve sempre ser admitido em casos excepcionais, a mulher pobre resulta muito mais protegida quando ele é regrado claramente pelas leis do Estado racional, não pelos obscurantistas argumentos religiosos.
Os Códigos Penais europeus, em geral, admitem a eutanásia passiva (desligar aparelhos) e punem a eutanásia ativa (código espanhol, art. 143.4; português, art. 134 etc.). No Brasil, neste momento, não há nenhuma disciplina jurídica específica sobre o assunto no Código Penal (quem pratica eutanásia, segundo a jurisprudência, responde por homicídio, eventualmente privilegiado). No Código de Ética dos Médicos há proibição expressa (art. 66). Apesar disso, sabe-se que é uma prática comum nas UTIs (Folha de S. Paulo de 20.02.05, p. C1). Na linha das tendências européias posicionou-se a Subcomissão de Reforma do Código Penal em 1994 (Alberto Silva Franco, Luíza Eluf, Paulo Sérgio Pinheiro e Jair Leonardo Lopes). Esse projeto de reforma do CP continua parado no Congresso Nacional.
Um debate sério (e profícuo) sobre o assunto (entre nós) é inadiável e a proposta legislativa referida serve como ponto de partida.
A eutanásia ativa (homicídio piedoso ou misericordioso), que consiste no ato de matar o paciente terminal (injeção letal, por exemplo), segundo a perspectiva da Comissão, seria um homicídio privilegiado (redução de pena de 1/3 a 1/2). Previa-se: pedido da vítima, mal irreversível e incurável e insuportável sofrimento físico e/ou mental. Quanto à eutanásia passiva (ortotanásia), que se dá quando se interrompe uma terapia (desligamento de aparelhos, por exemplo), contemplava-se uma causa de exclusão da ilicitude (inexistência de crime), desde que: o médico fosse o autor da medida extrema, hipótese de morte iminente (atestada por dois médicos), pedido com consciência, autorização da família e autorização judicial. Se de um lado não há como negar o avanço da proposta, de outro, não se pode deixar de criticar o seu excesso de cuidado: a autorização judicial, por exemplo, parece ser um exagero. O direito à ?morte digna? deve sempre estar cercado de cautelas, mas não pode sujeitar-se a tantas idiossincrasias.
Na nossa opinião, a eutanásia, qualquer que seja a modalidade (incluindo-se aí a morte assistida), desde que esgotados todos os recursos terapêuticos e cercada de regramentos detalhados e razoáveis, não pode ser concebida como um fato punível, porque não é um ato contra a dignidade humana senão, todo o contrário, em favor dela. Pensar de modo diferente levaria ao seguinte paradoxo: quem não padece nenhum sofrimento e tenta dar cabo a sua vida (tentativa de suicídio) não é penalmente punível; seria passível de sanção o ato de pôr em prática, não arbitrariamente, o pedido de morte de quem, em condições terminais, já não suporta tanto sofrimento físico e/ou mental?
Lógico que a eutanásia nunca pode ser concebida para (apenas) se conseguir uma vaga na UTI ou mesmo para se diminuir custos para o hospital. Esses motivos fariam da eutanásia uma morte aberrante e reprovável. Havendo, entretanto, justo motivo (grave sofrimento, morte irreversível, pedido consciente, anuência da família etc.), não há como deixar de admiti-la.
Já é hora de passar a limpo o emaranhado de hipocrisias, paradoxos, obscuridades e preconceitos que estão em torno da questão da eutanásia que, em última análise, envolve a própria liberdade humana, tão restringida pelas barbáries históricas que nada mais exprimem que a volúpia de dominar o homem para sujeitá-lo escravocratamente a crenças ilógicas e, muitas vezes, irracionais. Com urgência nosso Congresso Nacional deve se debruçar sobre o assunto. Os médicos não podem continuar com a ?espada da Justiça? sobre a cabeça. Os pacientes terminais devem decidir sobre a hora e local da sua morte. Necessitamos de uma legislação nacional clara e objetiva sobre a matéria. Mesmo porque, a grande maioria da população brasileira está de acordo com isso (cf. nesse sentido enquete feita pelo portal do Estadão).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br)