Abri preguiçosamente a janela de meu quarto, como faço todas as manhãs. O céu estava limpo, céu de brigadeiro, num tom azul profundo sem a mácula das nuvens, onde o sol se levantava, sobre o som de magistrais sabiás, canários e bem-te-vis. Senti em meu corpo, que ainda transpirava o sono da noite, os frescores da primavera, apesar de estarmos em pleno verão. Na rua um transeunte, que nunca tinha visto, me cumprimentou, com um vasto sorriso e um aceno cordial, que amavelmente respondi. Meio ensimesmado me indaguei, quem seria o rapaz que cumprimentei? Talvez um morador da rua ou alguém da igreja, quem sabe filho ou neto de um morador antigo. Preciso conhece-lo, é terrível não saber quem nos dá um aceno, quem é o amigo.

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No relógio, a hora já era avançada, e rapidamente me arrumei para ir ao trabalho. Senti uma certa dificuldade, até para ficar de pé. Percebi que próximo à cômoda tinha uma bengala. Quem será que colocou isto aqui? Não importa, vou aproveitar e me apoiar nisto aí. Nem sombra da patroa, nem das meninas, minhas filhas, talvez tenham saído, afinal já era tarde. Ao chegar no ponto do ônibus, as pessoas que lá estavam, também foram amáveis e dóceis comigo, e isto me deixou alegre, hoje seria um dia ótimo. A pequena condução chegou, e todos fizeram questão que eu fosse o primeiro. Agradeci tamanha

honraria e adentrei, na minúscula lotação. Novamente fui cumprimentado por todos, a ponto de me sentir encabulado. Sentei num banco ao fundo, como sempre faço e notei um colorido especial neste dia. Nas paradas que se fazia ao caminho, pessoas entravam e saíam, e percebi que todos se cumprimentavam. Realmente havia algo errado.

Entre sorriso, com licença e obrigado, consegui chegar ao trabalho, mas ali, também tudo estava mudado. Pessoas diferentes, da portaria até minha sala, todos felizes, contentes, bem na vida, bem de vida, de bem com a vida. Tudo me intrigava, e antes que perguntasse por alguém, recebia abraços efusivos e de pessoas felizes, alegres e contentes. Aquilo me angustiou, preciso encontrar um amigo, um conhecido, que me explicasse porque tudo mudou. Peguei o elevador, para ir a rua, precisava tomar um ar, percebi que todos falavam ?nele?, e mais uma vez isto me intrigou. No trajeto, do prédio ao cafezinho, encontrei, graças a Deus, com um amigo. Quase não o reconheci, estava envelhecido. Abracei-o, como criança que perdida encontra seus pais, e ele meio assustado, reconfortou meu coração. O que há velho amigo, porque tamanha aflição? Relatei-lhe minha angústia, era tudo maravilhoso demais, talvez tivesse morrido e me encontrasse no paraíso. Ele sorriu e calmanente explicou.

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?Ele? que todos falavam, era uma espécie de presidente, e se fazia presente em todos os lugares. Com ?ele?, as coisas tinham mudado e a corrupção acabado. A fome e a miséria também, e muito emprego havia sido criado. A renda era boa e farta e todos tinham acesso à educação, motivo pelo qual já quase não existia mais ladrão. Bandido! Coisa do passado, dos tempos em que ainda existia, traficante, assassinos e precisava de cadeião, a polícia mudara, mas ainda éramos os dinossauros, que teimávamos em não morrer. Não havia mais ódio, nem política, apenas felicidade e gratidão.

?Ele? era homem generoso de coração e de grande sabedoria, e só pensava na nação. A ordem foi restabelecida, sob a profundidade dos conceitos de Ulpiano, o respeito resgatado, a dignidade restaurada, os preconceitos extintos, todos eram iguais, porém únicos e diferentes.

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Aquilo tudo era novo, inusitado, perguntei onde poderia encontrá-lo, precisava aperta-lhe as mãos, minha esperança ?ele? tinha ressuscitado. Não é difícil saber, respondeu meu amigo, hoje

?ele? está aqui, amanhã ali, e depois acolá, atendendo a todos em tudo quanto é tipo de lugar, aliás amanhã estará lá, no interior do Paraná. Um abraço caloroso, num agradecimento profundo. Mas aquilo tudo me emocionava, me incomodava, era perfeito demais, somente ?Ele? seria capaz de tais proezas e a lugares, onde sempre há mendigos me dirigi. Não encontrei nenhum, nos hospitais também tudo funcionava muito bem. Nas escolas as crianças eu vi. Já era tarde, quase não percebi, e rumei a cidade onde ?ele? se encontraria.

Lá cheguei, em mais um novo dia, que acabava de amanhecer. Perguntei a alguns, que entusiasmados me ensinaram o caminho, ?ele? estaria na praça, seria impossível não o reconhecer. A praça estava lotada, uma fila enorme e gigantesca que serpenteava. Tomei meu lugar nela, e de longe eu o observava. Todos que a ?ele? se aproximavam, o abraçavam, o tocavam, o amavam. O dia foi passando, sobre o gorjear dos pássaros, e a fila, vagarosamente andando. Minha vez chegava, não queria nada, apenas apertar-lhe as mãos e olhar seu rosto. Quando ?nele? cheguei, já era noite, e seus olhos fitei, e através deles vi a compaixão, e sua mão apertei, neste momento acordei.

Era madrugada vazia. A patroa dormia, enquanto no quintal a cadela latia. Meio ensonado, percebi que tudo era um sonho. Nele queria voltar, e fazia força para me recordar. O rosto ?dele? ficou indefinido, apenas seus olhos e o calor de suas mãos, não tinha esquecido. Recordei-me, que no sonho precisei de bengalas, e também meu amigo estava velho. Quem sabe seja um reflexo do futuro? Mas quanta bobagem! O futuro, ainda é incerto, algo a ser descoberto. E por que não? Existe tanta coisa que ainda não compreendemos neste mundão. Quem sabe agora ?ele? esteja sendo concebido, quem sabe já esteja sendo gerado, ou até criado, pequeno ser abençoado. Quem sabe, lá no futuro, possa ?ele? novamente encontrar, sobre os sons dos sabiás, canários e bem-te-vis, fitarei seus olhos, apertarei suas mãos e lhe falarei: Eu já te vi.

Dr. Adolfo Rosevics Filho é membro da Academia de Cultura de Curitiba e Academia Sulbrasileira de Letras, subseção Paraná.