Ética pelo ralo

Há dois ditados sobre a lei. Um é antigo, vem do latim e tem sólidos alicerces: é o ?dura lex, sed lex?. Traduzido em miúdos, quer dizer que a lei é dura, mas é a lei. Portanto, tem de ser cumprida. Outro, mais verdadeiro hoje do que nunca, justifica as mazelas e desobediências: ?A lei, ora a lei!?. Vivemos sob o reinado deste último e aquele só é invocado quando se trata de justificar a punição dos mais fracos. Para os poderosos, a lei não é tão dura e poucos dela tomam conhecimento. ?Ora, a lei!?

Há poucos dias tentou-se inverter as coisas, dando uma forte dose de fortificante à expressão que despreza a força da lei. Buscou-se no processo eleitoral fazer valer a ética sobre a tradicional obediência ao texto escrito, rejeitando os candidatos a cargos eletivos de má fama ou que carregam nos ombros acusações, mesmo que ainda não provadas. A idéia era impedi-los de pleitear os votos nas urnas ou, pelo menos, dificultar a sua posse até que fique provada a sua inocência. E, da maioria, a culpabilidade.

O ato heróico partiu do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, que barrou alguns candidatos. Negou-lhes registro alegando falhas burocráticas em suas habilitações e até a necessidade de obstruir sua jornada política por não apresentarem adequada folha corrida. Logo, magistrados de outros estados seguiram os mesmos caminhos. Foram barrados no baile cerca de quatro mil candidatos a candidato sobre os quais pendem suspeitas. Algumas já suficientemente fundamentadas e outras ainda por provar. Entre os barrados certamente estão alguns inocentes, mas a multiplicação dos culpados fez com que se aceitasse a inversão da prova. A prova não mais caberia a quem alega a culpabilidade dos pretendentes a cargos eletivos e sim aos próprios pretendentes. Eles, que provem ser inocentes.

Esse processo de higienização na política brasileira mereceu estrepitosos aplausos, inclusive deste jornal, embora desde logo tivéssemos advertido, acompanhando juristas respeitáveis e de renome, que o golpe na malandragem não iria pegar. O princípio da inocência até prova em contrário é pilar da nossa Constituição e não segui-lo pode significar o enterro da democracia. Da nossa duvidosa e nominal democracia. Assim, em nome de tão sólido mandamento, teríamos de nos curvar ao direito dos malandros tapearem o eleitorado, chegarem aos cargos eletivos e, com a couraça do poder e imunidades, fazer bis em seus negócios escusos e fabricar mais algumas pizzas para comemorar a vitória das maracutaias sobre os legítimos direitos dos eleitores.

Pois é o que está acontecendo, para desgosto de todos os que tiveram o sonho de ver a inversão do ônus da prova servir de peneira para afastar das urnas uma caterva de malandros, que é muito maior do que os inocentes indigitados. Já começa a anulação na Justiça Eleitoral dessas decisões corajosas e moralizadoras. Não podemos condenar essa revisão que os tribunais superiores fazem, mas temos de lamentar que o ?dura lex, sed lex? seja invocado para defender os corruptos e se consagre aquele outro infeliz ditado popular: ?A lei, ora a lei!?.

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