Ética na política, CPI e cassação de mandato parlamentar

Retoma-se o processo parlamentar de afirmação de ética da política iniciado vigorosamente na Legislatura 1991/1995 com o impeachment do Presidente Fernando Collor e com a cassação de onze parlamentares federais envolvidos com a destinação dos recursos do Orçamento da União. Deputado federal naquela legislatura e membro da Comissão de Constituição e Justiça, acompanhei os trabalhos referentes a ambas as Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito que resultaram no afastamento do Presidente e dos deputados federais e fui relator de processo de cassação de mandato de um dos parlamentares envolvidos na corrupção. Depois de doze anos, a matéria enfrentada é da mesma natureza, embora os meios, formas de atuação, personagens e objetivos possam ser diferenciados. O processo iniciado em 1992 ficou inconcluso, em especial pela incapacidade do Poder Executivo Federal, do Congresso Nacional, dos partidos políticos e das organizações da sociedade civil em discutir, elaborar e aprovar projetos de ampla reforma política, estabelecendo novos parâmetros no sistema representativo democrático e em sua evolução para um sistema político onde a sociedade possa ter participação decisiva em todas as etapas da construção democrática e não apenas no momento de exercer o direito de voto. .

Naquela oportunidade, em 1994, escrevi: ?A CPMI constituiu-se em um evento histórico na política brasileira. Pela primeira vez, Congresso Nacional examinou profundamente o sistema de corrupção, implantado há muitos anos na Comissão Mista de Orçamento, de onde se originaram a prática de crimes contra o Erário Público. A população exigiu que a investigação atingisse a todos aqueles que formaram uma verdadeira quadrilha para saquear o dinheiro público. Os resultados atingidos podem ser considerados limitados, mas com certeza é a continuidade de um amplo movimento impulsionado pelas organizações da sociedade civil que se mobilizaram para a exigência da ética na política. Esse movimento foi iniciado com a cassação do Presidente Collor de Mello pelo Congresso Nacional, e se estende agora à cassação dos parlamentares envolvidos com todo o sistema de corrupção relativo aos recursos do Orçamento da União. E continuará com as investigações das atividades nocivas dos grandes grupos econômicos constituídos pelas empreiteiras? (Edésio Passos, in ?Ética na Política?, Separatas de Discursos, Pareceres e Projetos n.º 71/94, Câmara dos Deputados).

Em recente voto relativo à ?CPI dos bingos?, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, salientou a importância das Comissões Parlamentares de Inquérito: ?O direito de investigar, por sua vez que a Constituição da República atribuiu ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem (art. 58, § 3.º) tem, no inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização desse relevantíssimo encargo constitucional, consistente no desempenho, pela instância legislativa, do seu essencial poder de controle? . E lembrou que: ?Na verdade, e como bem assinalou Pontes de Miranda (?Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n.º 1, de 1969?, tomo III/51-52, item n.º 4, 3.ª ed., 1970, RT), as comissões de inquérito, independentemente de qualquer previsão normativa, nasceram no momento em que o Parlamento surgiu na história dos povos livres? (STF-MS-24.831/DF).

O ministro Celso de Mello relembrou, em seu voto, o posicionamento do senador e jurista Josaphat Marinho sobre a matéria: ?Desse modo, a função de controle, que é essencialmente política, cresce de importância, não só no regime parlamentar de governo propriamente dito, como em todo sistema de que participem, investigando e deliberando, Câmaras provindas do voto popular. Através dela, o Poder Legislativo exerce alta missão de crítica dos atos governamentais e de defesa do interesse coletivo, tão relevante quanto a tarefa de formular normas jurídicas, a que fornece, continuamente, valiosos subsídios. Além disso, essa forma de ação, visando, geralmente, à análise de fatos determinados, concorre mais do que o trabalho legislativo ordinário, quando exercitada com sobriedade, para que os órgãos do Parlamento conquistem a estima popular, indispensável ao respeito de suas atribuições? (Revista Forense, vol. 151/98-102, 99).

Atualmente, os fatos relacionados com a corrupção de integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo Federal, de empresas e de partidos políticos estão sendo apurados de modo mais amplo, por envolver diversas frentes. O impeachment do Presidente Collor foi estabelecido através da ligação de seu grupo político de sustentação pessoal, mas não atingiu aos parlamentares de sua base de apoio. Já a cassação dos parlamentares pelo desvio da real destinação de recursos do Orçamento da União, atingiu deputados federais de vários partidos políticos, após a cassação do Presidente. Hoje, a apuração dos fatos mobiliza a Polícia Federal, como sucedeu naquela oportunidade, e os organismos internos da Câmara dos Deputados, a Corregedoria e a Comissão da Ética. Mas o ponto central localiza-se em CPMIs que possuem o poder de ampla apuração dos acontecimentos ilícitos, ilegais e criminosos. A complexidade do processo atual reside na necessidade do cruzamento das informações colhidas nessas diversas áreas e quais os procedimentos relativos a (1) corrigir as falhas administrativas (2) identificar os responsáveis pelos atos irregulares, ilegais e/ou ilícitos (3) o encaminhamento dos procedimentos para a responsabilização política e criminal (4) as propostas de alteração constitucional no campo partidário e eleitoral.

Os procedimentos atuais no âmbito da Câmara dos Deputados poderão culminar com a cassação de deputados federais. Os relatórios finais das CPMIs e dos organismos internos da Câmara dos Deputados, se concluírem pela quebra de decoro parlamentar, serão encaminhados à Comissão de Constituição e Justiça, onde se iniciará o processo da possível cassação do mandato parlamentar. Em caso de votação naquela Comissão pela procedência da acusação, o plenário da Câmara dos Deputados definirá sobre a perda do mandato do deputado acusado.

A Constituição Federal estabelece que: ?Art. 55. Perderá o mandato o deputado ou senador: … II cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar. Parágrafo 1.º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no Regimento Interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas?. Por sua vez, as especificações sobre perda de mandato contidas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados que caracterizam a incompatibilidade com o decoro parlamentar, são as seguintes: ?Art. 244. O Deputado que descumprir os deveres inerentes ao seu mandato ou praticar ato que afete a sua dignidade, estará sujeito ao processo e às medidas disciplinares previstas nesse Regimento e no código de ética e decoro parlamentar, que poderá definir outras infrações e penalidades, além das seguintes: … III perda da mandato. Parágrafo 2.º – É incompatível com o decoro parlamentar: I o abuso das prerrogativas constitucionais asseguradas a membro do Congresso Nacional; II a percepção de vantagens indevidas; III a prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos dele decorrentes?.

O abuso das prerrogativas constitucionais, a percepção de vantagens indevidas e a prática de irregularidades graves no desempenho do mandato e de encargos dele decorrentes por parte de deputado, além de caracterização de conduta criminosa, estabelecem a incompatibilidade com o decoro parlamentar, devendo ser penalizado com a perda do mandato. Miguel Reale escreve: ?Assim sendo, quando a Constituição se refere a ?decoro parlamentar?, entra pelos olhos que quer significar a forma de comportamento do parlamentar de conformidade com as responsabilidades das funções que exerce, perante a sociedade e o Estado? (in Revista de Direito Público, n.º 10, págs. 87 e seguintes).

O instituto do decoro parlamentar tem caráter eminentemente político e a decisão a ser adotada pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Plenário da Câmara dos Deputados também é eminentemente política, mas tendo em vista a prova dos fatos caracterizados como atentatórios ao decoro parlamentar. Não se trata do mero juízo político destituído de fundamentos jurídicos, mas da análise profunda do comportamento parlamentar à luz dos fatos que atingem a respeitabilidade, a imagem e a dignidade do Parlamento. A conclusão a ser obtida, portanto, deverá ser a conjugação de uma análise político-jurídica-constitucional dos fatos descritos nos relatórios das CPMIs e dos organismos internos da Câmara dos Deputados.

Estabelece a Constituição Federal (art. 55, parágrafo 2.º) que a perda do mandato será decidida por voto secreto e maioria absoluta. A justificativa é que a votação secreta permitiria a isenção dos deputados diante da cassação de outro membro do Parlamento. Contra essa norma são endereçadas críticas, mas sua alteração para voto aberto depende de projeto de emenda constitucional. Já o presidente da República pode ser impedido e afastado de suas funções pelo voto aberto do Congresso Nacional. Os artigos 85 e 86 da CF/88 não estabelecem que a responsabilização do Presidente da República deva ser adotada pelo voto secreto. Assim, não há qualquer justificativa de manter o voto secreto nas votações para decidir sobre a perda do mandato de parlamentar.

No momento atual, estamos diante de um longo caminho a percorrer, quer pela complexidade dos fatos, como pelos vários instrumentos de apuração da conduta irregular, ilícita e/ou criminosa, como pelo envolvimento de grande número de deputados, administradores públicos e dirigentes políticos. Novamente, os debates e decisões das CPMIs se constituirão em poderosos fatores de formação da consciência política. Primeiro, pela imposição da necessidade da transparência das ações políticas; segundo, pelo desmascaramento dos meios utilizados nas ações porventura criminosas; terceiro, pelas pessoas envolvidas e pelas instituições atingidas; e, finalmente, pelos resultados que poderão se tornar pontos fundamentais para a afirmação democrática, por mais dolorosos que venham a ser.

Retornemos ao voto do ministro Celso de Mello que assinala a tradição política democrática desde o Império, no comentário de Pimenta Bueno, em 1858: ?Este direito de inspeção em todo e qualquer tempo, em que o poder legislativo se reúne, é um dos principais atributos que a soberania nacional lhe delegou; é uma garantia, em exame, que a sociedade, os administrados exercem sobre seus administradores, um corretivo valioso e indispensável contra os abusos ministeriais, corretivo que procede da índole e essência do governo representativo, que, sem ele, não se poderia exercer? (in ?Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império?, p. 105/106, itens n.ºs 125/127, obra reeditada em 1958 pelo Ministério da Justiça).

Esperemos que as novas lições que estão sendo transmitidas aos nossos administradores e representantes políticos sejam suficientes para que se dediquem imediatamente à tarefa indispensável de uma profunda, ampla e esperada reforma política.    

Edésio Passos é advogado, membro do IAB e da Abrat, assessor jurídico de entidades sindicais de trabalhadores e ex-deputado federal (PT/PR).

edesiopassos@terra.com.br

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo