Indubitável que o investimento das indústrias farmacêuticas resultam em avanços tecnológicos para benefício da sociedade. Da mesma forma, não resta dúvida de que a relação entre a indústria e os médicos provoca conflitos éticos quase insolúveis. Como tentativa de trazer maior transparência e menos desconfiança entre os envolvidos, um protocolo foi firmado entre Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) e estabelece regras para a disseminação de medicamentos e correlatos sem interferir na independência técnico-científica entre as classes, respeitando-se padrões éticos.
Alguns pontos polêmicos, sobre os quais se firmaram as diretrizes, estão relacionados ao patrocínio pela indústria de congressos médicos, realização de simpósios pelas indústrias dentro dos congressos, distribuição de brindes e presentes e visitação médica.Por este novo protocolo, médicos serão convidados para eventos realizados pelas indústrias farmacêuticas, através de critérios objetivos previamente estabelecidos, considerando-se inadequado o critério comercial. Fixaram-se patamares financeiros para brindes e/ou presentes a serem ofertados aos médicos, os quais deverão ter valor meramente simbólico. Pretendeu-se restringir patrocínios de viagens somente ao próprio profissional participante e nãopara acompanhante.
Uma corrente entre os médicos deixa claro haver certo desconforto quanto a essa iniciativa do CFM. Isto porque o protocolo pode soar inócuo, até hipócrita, quando se considera, por exemplo, que um estudo clássico de 2000 no “Jama” (periódico da Associação Médica Americana) concluiu que a distribuição de brindes, amostras grátis e subvenções para viagens têm efeito sobre as atitudes dos médicos. Pagar uma viagem para um médico aumentaria entre 4,5 e 10 vezes a probabilidade de receitar as drogas da patrocinadora. Neste aspecto, não importariam as restrições delineadas no acordo.
Há evidências, por meio de pesquisas, de que o médico pode ser influenciado por outras formas, na prescrição de determinado medicamento, em detrimento da evidência científica, a qual deveria ser o fator mais importante na escolha do medicamento.
Ademais, o Código de Ética Médica, no artigo 69,veda ao médico: “obter vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional“.
Desde 2000, há resolução do CFM (nº 1595) no sentido de que os médicos, ao proferirem palestras ou escrever artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso na medicina, devem declarar quem patrocina suas pesquisas e/ou apresentações. Outra norma do CFM neste sentido é a resolução nº 1.939/2010, que proíbe a participação do médico em promoções relacionadas com o fornecimento de cupons, cartões de descontos para a aquisição de medicamentos, em razão da existência de conflito de interesses – neste caso, o paciente saiu perdendo.
E também é vedado ao médico, segundo o artigo 104 do Código de Ética: “Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais”. Ou seja, normas e diretrizes existem, mas não cumpridas. Essa indisciplina pode levar o médico a responder a um processo ético-disciplinar e ser punido. Todavia, parece que a outra parte, a indústria farmacêutica, não estava a observar tais preceitos éticos e, para esta, inexiste qualquer punição.
Vale a lembrança de que o protocolo não tem força legal. É uma iniciativa de cooperação entre os lados envolvidos, inclusive seguindo padrões internacionais. Anunciou-se recentemente que a indústria farmacêutica mundial obrigou-se a rever seu código de boas práticas, numa tentativa de acabar com o suborno a médicos, especialmente em mercados emergentes. De acordo com a IFPMA – Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas, na sigla em inglês -, o objetivo da mudança foi ampliar o código para garantir “padrões éticos e profissionais”. A Johnson&Johnson, por exemplo, teve de pagar US$ 78 milhões a autoridades britânicas e dos EUA em abril de 2011, após a denúncia de pagamentos a médicos na Grécia, Polônia e Romênia.
Lamenta-se que ainda se gaste mais com marketing e ações propagandistas do que com pesquisas. E também que haja casos noticiados de subornos e corrupção na relação médico e indústria. Assim, o assunto não está encerrado e muito ainda se falará sobre o tema, no Brasil e no mundo.
A simbiose continua: os médicos precisam da tecnologia possibilitada pelas indústrias farmacêuticas e os pacientes agradecem pelo subsídio constante à pesquisa e a novas descobertas. Essencial, porém, é manter a imparcialidade e ser crítico quanto ao fármaco ou equipamentos utilizados, afinal o médico deve zelar por seu paciente, a qualquer preço.
Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde – drasandra@sfranconsultoria.com.br
Thaís Lacerda é advogada da SFranco Consultoria Jurídica, especializada em Direito Médico e da Saúde – tlacerda@sfranconsultoria.com.br