Cidadãos de Estado tivemos, e teremos outros mais notáveis. Entrementes, seríamos com certeza criativos, quase originais, se tentássemos formar um partido de Estado – ainda que o caráter dos movimentos e ações políticas com vistas à conquista do poder sejam sempre totalitários, em razão da plenitude de suas idéias de organização social, serviços públicos e direitos.
As regulações sociais que retiraram o homem do Estado de Natureza para o Estado de Cultura e sua regência institucional viveram ao limite essa contradição autocrática. E desde então, crescentemente, uma construção no sentido de democracia social perpassa as relações Estado e Sociedade. Com sangue, suor e lágrimas.
O centro dessa questão ainda permanece no trabalho, no processo de trabalho em sociedade, como constante desafio e facho na busca de uma racionalidade econômico-social, que por sua vez explique cabalmente e justifique política e cientificamente os acertos de cooperação, coordenação e hierarquia no sistema produtivo. Ao que ainda parece, estes seriam os fundamentos científicos para uma análise da sociedade e de suas classes sociais, bem como para qualquer projeto e política com o objetivo de sua superação histórica.
Embora status, estamentos e classes sociais de todos os tempos e seus “intelectuais orgânicos” (por meio de ligas, movimentos e partidos) tenham lutado para se compor com ou se opor a uma dominação política e social e então conquistar o poder – “essa política” -, o Estado alcançado e controlado não pertence a quem o ocupa. Pelo menos, é o que todos queremos reconhecer, com a exceção dos conselheiros da República (que figuram como totens de imprensa), os quais seriam condôminos dela e das corporações de servidores públicos.
Pro domo sua: cada um puxa para um lado que, com certeza, não é o nacional, do cidadão comum. Isso ocorre também no plano político, ainda que a tradição de opor os direitos sociais ao “poder vigente” seja o cerne petrificado de qualquer sistema político e mesmo que a subversão de sentido que vem subsumindo os direitos sociais ante os desejos e direitos de uma pouco definida “realização individual” esteja ora refluindo nesse remanso da globalização neoliberal: a ser cada vez mais contestada porque voltamos às evidências ignípedes do “penhor social que pesa sobre desejos, vantagens e direitos dos indivíduos”.
Por conseqüência, partido de Estado é rigorosa contravenção de sentido, embora lamentável e não confessada realidade. Se for partido, é evidentemente de uma classe e, assim, fração de um todo; com exceção da presumida “derradeira” classe dirigente, o proletariado, que teria por missão exterminá-lo.
Porém quem sabe Marx se tenha iludido em prospectar o “fim do Estado”? O bicho ainda está aí… na prolongada sobrevida do capitalismo tardo.
Entrementes, a apropriação que se faça do Estado – “democrático”, “totalitário”, “revolucionário”, para tantas coisas (“manter organizada a vida social”, “manter o sistema produtivo”, “sustentar nossos valores”, “abrir portas para o futuro”, “salvar as tradições”) -, ele ainda e sempre colocará em confronto a sociedade, suas classes e profissões e o governo.
Grupos de intelectuais brasileiros e lideranças políticas “de esquerda” vêm insistindo em caracterizar e gratificar os servidores públicos como uma porção decisiva ou essencial do Estado, senão a própria mão-agente do Estado. Trata-se de meia verdade: os profissionais com marcante desempenho funcional e social na carreira pública têm no seu trabalho a ação própria de Estado, mesclando-se e até se confundindo na coisa pública; porém a massa de servidores desqualificados funcionalmente e principalmente aqueles que desfrutam cargos públicos como prebendas e prêmios não são o serviço público e só poderão ser tão elasticamente reputados por alguma retribuição política e de sociabilidade fácil.
Nas carreiras públicas especiais – justiça, segurança, ciência e educação, saúde, etc. – os setores muito qualificados funcionalmente e que têm estrutura com hierarquia corporativa e rígido escalão de carreira são essenciais ao funcionamento e “conservação” do Estado; enquanto a maioria dos outros são necessários porém facilmente substituíveis. Ao governo caberia garantir, a cada um em seu modo operante, a estabilidade e a sustentação com contrapartidas justas.
De tempos em tempos, é preciso que haja uma depuração produtiva e uma decantação de estrutura e funções do Estado. Lula foi sorteado pelas urnas: e daí todos, felizmente, não se envergonham de se transformar em seres socializantes ou “social-democratas” de Estado em busca do seu welfare-state. Não socialistas radicais, que isso é outra coisa, e, por sinal, inominável.
Nesse conjunto, a burocracia de Estado é uma mistura de úteis, pouco úteis e inúteis, e a racionalidade política não poderia permitir a moldagem de todos num só pacote, com prêmios políticos e beneplácitos nos atuais planos e projetos de reorganização estatal que os partidos conservador-liberais e populistas estão impondo para preservar seu eleitorado.
Em países desenvolvidos, as novas demandas sociais se apresentam em marcha sonolenta, pedindo espaço na “perfeição social”. Mas em nossos “proclamados países em desenvolvimento” temos crescentes urgências e afogos conformes à ampliação do estado de consciência social. Já os países atrasados e dependentes ou sofrem do letargo etnotribal ou o tumulto das necessidades emergentes a cada instante.
Pois, com as recentes políticas globaliberalizantes, as deformações da vida social e do regime de trabalho se acentuaram de tal modo, que há um nítido retorno à idéia de um Estado suficientemente representativo da nação, capaz e eficaz, de nítidos contornos keynesianos.
Vamos ter que voltar a estudar Lord Keynes, que tanto pode estar servindo de inspiração a chineses e brasileiros como a britânicos e norte-americanos. Quem poderia prever, depois dos vaticínios de Francis Fukuyama e Roberto Campos, que Marx e Keynes estariam de volta ao púlpito?…
Walmor Marcellino
é escritor e jornalista.