Estado que mata

Meia noite e meia. O empresário e a professora, sua mulher, iam para casa, vindos de um aniversário, já meio atrasados para o descanso de outro estafante dia. De repente, um flash. A essa hora? Fora multado e resolveu pedir explicações. Afinal, não estava correndo tanto, a 60 por hora. Não terminou de dizer o que queria nem foi trabalhar no dia seguinte. Um tiro certeiro perfurou-lhe o coração. Diz o sargento que fazia bico de segurança particular que o motorista queria chutar o radar móvel sob sua guarda…

Não interessa o que aconteceu depois do estouro do flash, exceto o fato que o sargento fugiu para se apresentar horas depois, naturalmente para evitar o flagrante. O operador do radar também não se incomodou com o agonizante motorista flagrado pela fiscalização móvel. O empresário, socorrido pela mulher, em vão tentou chegar até um hospital. O pai do falecido, inconformado com morte assim tão besta de seu filho bem criado, jurava vingança. Por causa de um radar! E depois da meia-noite. O Estado, preocupado em arrecadar em hora extraordinária, nega segurança (e socorro também!) a quem lhe financia os excessos.

Aconteceu em São Paulo (R$ 24 milhões em multas por mês), mas podia ter sido em Curitiba, Foz do Iguaçu ou qualquer outro lugar. Histórias semelhantes não faltam por esse Brasil afora, onde a cidadania engatinha e onde o ato de multar é exercido em parceria com empresas que visam lucro. Dizem que é falta de educação. Educação está faltando, sim, mas também para os agentes do serviço público, incapazes de distinguir entre o inconformismo de alguém, flagrado em hora imprópria, e o limite de uma autoridade que se confunde com a ação de bandidos.

Esse é um problema quase insolúvel. E cada vez mais faz sentido a campanha do falecido deputado Aníbal Curi, visceralmente contrário à indústria das multas eletrônicas. O trânsito nosso, já caótico, está uma babilônia. Nas estradas federais, onde guardas rodoviários achacam e se travestem de polícia alfandegária revirando porta-malas, de um lado, e liberando encrencas, de outro, a pedido de autoridades (pobres dos mortais na planície!); nas estaduais, onde o cafezinho já tem preço de uísque importado e, agora, nas municipais também.

Na edição de quinta-feira, publicamos extensa reportagem com denúncias circunstanciadas de grave “maracutaia” na Diretran de Curitiba. O fato é bem mais grave que aquele conluio anteriormente dado à luz que beneficiava políticos e autoridades ou isentava veículos do transporte coletivo. O sistema, como se viu, é falho e, para cumular, usam-se dois pesos e duas medidas dependendo do tipo de contestação feita (se oral ou se escrita) – quanta cara de pau! Culpa cabe também ao Detran – órgão sempre de boas rendas para os cofres públicos e arredores. Mortos e “laranjas” escondem a face dos infratores tornados delinqüentes com uma facilidade incrível. A cidadania que se lixe.

Com os “pardais eletrônicos”, radares fixos e móveis e “lombadas eletrônicas”, o poder público em qualquer município desse Brasil desvalido esqueceu dos buracos e lombadas de verdade, pela lei irregulares, para cuidar do cofre cheio. Uma indústria que, no vale-tudo, emprega sargentos de folga na corporação! Quem transita na madrugada tem uma preocupação a mais que aquela tradicional da segurança contra os bandidos que agem à solta: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Só que essa indústria da multa, além de vítimas indefesas, está produzindo cadáveres. Está na hora de rever sistemas, abandonar essa vontade incontida de arrecadar e, talvez, voltar ao tempo antigo da notificação face a face, com “teje preso” e tudo.

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