Estado, ordem social e privatização (Final)

Além da questão de que o Estado é um ator fundamental na prestação direta de serviços sociais, segundo nossa Constituição de 1988, outro ponto que deve ficar claro é que qualquer repasse de atuações do Estado para o ?terceiro setor? apenas pode ocorrer com relação às atividades-meio das entidades estatais. Seria a chamada terceirização lícita já tratada.

Quando a Administração Pública firma um acordo de vontade com terceiros para que estes exerçam alguma atividade para o Poder Público, seja por meio de contratos administrativos, convênios, contratos de gestão, termos de parceria, ou qualquer outra denominação, isso será denominado terceirização (37).

Entendemos que qualquer terceirização a ser realizada pela Administração Pública, independentemente do instrumento a ser utilizado, apenas será lícita se o objeto for a execução de alguma atividade-meio do órgão ou entidade estatal (38).

Não há sentido que se entenda que não pode a Administração Pública terceirizar atividades-fim do Estado para a iniciativa privada, por meio de contratos administrativos regidos pela Lei 8.666/93, por se considerar esta prática como burla ao concurso público, e permitir a terceirização de atividades-fim para entidades do ?terceiro setor? por meio de convênios, contratos de gestão com organizações sociais e termos de parceria com OSCIPs. As normas que tratam dos convênios, dos termos de parceria com as OSCIPs (Lei 9.790/99) ou dos contratos de gestão com as organizações (Lei 9.637/98), em qualquer momento alteram o ordenamento jurídico brasileiro no sentido de permitirem que o Estado repasse atividades próprias, serviços sociais, para o ?terceiro setor?.

Gustavo Justino de Oliveira e Fernando Borges Mânica ressaltam ?que a OSCIP deve atuar de forma distinta do Poder Público parceiro, ou seja, deve ser clara a separação entre os serviços públicos prestados pela entidade pública e as atividades desenvolvidas pela OSCIP (…) impedindo-se, assim a caracterização de uma forma ilegal de terceirização de serviços públicos. Afinal, o termo de parceria é instrumento criado para que entidades do terceiro setor recebam incentivo para atuar ao lado do ente público, de maneira distinta dele, e não para que substitua tal ente, fazendo as vezes do Poder Público?(39).

Note-se que todos os instrumentos citados são possíveis de serem utilizados para fins de fomentar o ?terceiro setor?, que é um dos papéis do Estado. Di Pietro defende o papel de fomentador do ?terceiro setor? pelo Estado, mas aduz que a extinção de órgãos ou entidades estatais e a paulatina diminuição da prestação de serviços sociais pelo Estado, apenas com o incentivo da iniciativa privada por meio das parcerias ?em muitos casos, poderá esbarrar em óbices constitucionais, já que é a Constituição que prevê os serviços sociais como dever do Estado e, portanto, como serviço público?(40).

Walter Claudius Rothenburg também entende ser ilícito repassar para organizações sociais, para a gerência e prestação ampla dos serviços de saúde, por ser esta uma atribuição típica do Estado, assim como que na área da educação devem ter universidades mantidas pelo próprio Estado, sendo possível a contratação com a iniciativa privada de serviços ancilares (41).

Conclusões

Diante de todo o exposto, entendemos o seguinte:

1. Nossa Constituição de 1988 é uma Constituição Social, que na ordem social obriga a atuação direta do Estado dos serviços sociais, nas áreas da educação, saúde, assistência social, etc.;

2. Não é possível que, por exemplo, prefeituras terceirizem toda a gestão da saúde e educação para entidades do ?terceiro setor? qualificadas como organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público OSCIPs;

3. Ao contrário das atividades econômicas tratadas na ordem econômica da Constituição, nas quais a participação do Estado pode ser considerada como subsidiária, os serviços sociais devem ser prestados pelo Poder Público, de forma democrática, fiscalizados pela sociedade civil, que também deve participar na formulação de políticas, por meio, por exemplo, dos conselhos gestores de políticas públicas;

4. A iniciativa privada, com fins lucrativos (mercado) ou sem fins lucrativos (?terceiro setor?), também pode prestar estes serviços, até com o fomento do Estado – de preferência para o ?terceiro setor? -, mas não como resultado da desresponsabilização do Estado na prestação direta destas atividades;

5. A Administração Pública apenas pode terceirizar suas atividades-meio (execução material), seja utilizando-se de contratos com empresas e entidades do ?terceiro setor?, convênios com o ?terceiro setor?, contratos de gestão com organizações sociais e termos de parceria com OSCIPs;

6. Não pode o Poder Público firmar um contrato, convênio ou termo de parceria com entidades do ?terceiro setor?, seja para repassar atividades-fim, a gestão de todo um aparelho público prestador de serviços públicos sociais, ou mesmo disponibilizar mão-de-obra, sob pena de caracterização de burla ao princípio constitucional do concurso público;

7. Assim, a disponibilização de professores para escolas públicas ou de médicos para hospitais públicos não poderá ocorrer por meio de contratos, convênios, contratos de gestão ou termos de parceria, com empresas, associações de utilidade pública, organizações sociais, OSCIPs, cooperativas;

8. Mesmo se condizente com a atividade-meio da Administração Pública, não poderá a terceirização tratada neste estudo servir para disponibilização de pessoal com a caracterização de pessoalidade e subordinação direta.

Notas:

(37)     Sobre o tema ver VIOLIN, Tarso Cabral. A terceirização ou concessão de serviços públicos sociais. A privatização de creches municipais. In: Informativo de Direito Administrativo e Responsabilidade Fiscal IDAF n.º 13, agosto/2002, Curitiba: Zênite.

(38)     Note-se que muitos entes da Administração Pública vêm firmando parcerias com o ?terceiro setor? para fugir dos limites com gastos de pessoal fixados na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000). Ora, qualquer terceirização com o intuito de substituição e servidores deve ser contabilizada como despesas com pessoal, nos termos do parágrafo 1.º do art. 18 da LRF: ?Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência. § 1.º Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como ?Outras Despesas de Pessoal?.

(39)     OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de, MÂNICA, Fernando Borges. Organizações da sociedade civil de interesse público: termo de parceria e licitação. In: Fórum administrativo Direito Público, ano 5, n.º 49. Belo Horizonte: Fórum, mar/2005, p. 5209-5351.

(40)     DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 264 e 269. Sobre a fuga do regime jurídico administrativo e as parcerias, a autora ainda indaga: ?qual a razão pela qual a Constituição estabeleceu normas sobre licitação, concurso público, controle, contabilidade pública, orçamento e as impôs para todas as entidades da Administração Pública? Será que as impôs porque se entendeu que elas são essenciais para proteger a coisa pública ou foi apenas por amor o formalismo? E se elas são essenciais, como se pode conceber que, para escapar às mesmas, se criem institutos paralelos que vão administrar a mesma coisa pública por normas de direito privado, inteiramente à margem das normas constitucionais??. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 296. Ver ainda VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. Sobre fomento ver ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003.

(41)     ROTHENBURG, Walter Claudius. Algumas considerações sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações do Estado com empresas e Organizações Sociais. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (Coord.). Terceiro Setor, Empresas e Estado; novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 107.

Tarso Cabral Violin é mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Administrativo do Centro Universitário Positivo – UnicenP. Coordenador e Professor da Especialização em Direito do Terceiro Setor do UnicenP. Coordenador da Pós-Graduação Lato Sensu de Direito do UnicenP. Autor do livro ?Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica? (editora Fórum). Conselheiro Editorial da Revista de Direito do Terceiro Setor (Fórum). Assessor Jurídico da Celepar – Companhia de Informática do Paraná. Advogado e Consultor Jurídico em Licitações e Contratos Administrativos, Direito Administrativo e Direito do Terceiro Setor.

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