Estado de direito global e o governo da globalização

Não podemos enfrentar os problemas da globalização do planeta (espetaculares aumentos dos preços dos alimentos, energia nuclear, aquecimento climático, fluxos incontrolados de imigrantes, crise financeira mundial etc.) com os instrumentos, o Direito e as Justiças nacionais ou regionais. A situação de desordem geral parece muito evidente, visto que as corporações atuam multinacionalmente enquanto os agentes de controle são locais ou nacionais ou, no máximo, regionais.

O velho conceito de soberania de cada Estado está em crise porque os Estados soberanos (isoladamente) não conseguem solucionar problemas globais. Na questão do tráfico de drogas, por exemplo, pouco vale a atuação de um só país (ainda que sua iniciativa seja adequada). Problemas mundiais requerem um controle, um Direito e uma Justiça globais.

Está inviabilizado, por ora (quem sabe um dia isso vai ocorrer), um governo mundial democrático. Os organismos internacionais atuais (ONU, OEA, FMI, Banco Mundial etc.) não contam com poderes suficientes para gerenciar o planeta. Mas algo deve ser feito com rapidez porque, do contrário, pode ser que qualquer intervenção seja muito tardia.

Tomemos como exemplo a tendencial inclinação mundial, nesse momento, pela energia nuclear (que muitos já estão chamando de energia “ecológica”). A atual catástrofe climática somada à crise do petróleo está levando o mundo globalizado a ignorar os riscos dessa energia.

Ulrich Beck (El País de 16/7/08, p. 29), a propósito, sublinhou: “Em minha teoria da sociedade de risco mundial faço a distinção entre antigos e novos riscos. Os novos tipos de risco, que antecipam catástrofes globais, sacodem os fundamentos das sociedades modernas. Apresentam, entretanto, a característica do que pode ser indenizado. Mas quando o clima se altera, quando há um problema numa central nuclear (ou melhor: numa central “ecológica”) ou quando a genética intervém de forma irreversível na existência humana, já é demasiado tarde” (ou seja: isso não é indenizável porque pode não sobrar ninguém para indenizar nem ninguém a ser indenizado).

A solução que muitos estão sustentando para o problema energético não se encaminha para a alternativa entre segurança e risco, sim, entre risco e risco maior. E acreditar que uma só superpotência (EUA) seja capaz de pôr ordem na desordem mundial é muita ingenuidade.

A conclusão, diz Nicolas Sartorius (El País de 17/7/08, p. 23), “é que a sociedade da globalização está sem governo e, em conseqüência, todo desarranjo, disfunção, especulação, trapaça ou violência pode encontrar assento sem maior obstáculo”.

Que fazer? No âmbito criminal já aparecem os primeiros sinais do Estado de Direito global: Tribunal Penal Internacional (que é independente), Tribunal Internacional de Justiça (órgão judicial máximo da ONU) etc. Pela primeira vez até um chefe de governo (o sudanês El Bashir) no exercício do poder pode ser preso, por crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra. O TPI vem sinalizando que todos devemos respeitar os direitos humanos e que ninguém, nem sequer chefes de Estado, gozam de imunidade nesses crimes que violam o “iushumanitário”.

Fora do âmbito criminal, amplos acordos multilaterais levados a cabo por instituições democráticas podem ser um bom começo. Mas não bastam acordos de livre comércio. Par além deles, “são imprescindíveis instrumentos de coesão social como os fundos de convergência, para facilitar infraestruturas físicas e educativas que permitam o crescimento sustentado do planeta” (Nicolas Sartorius, cit.).

Nenhum país pode mais sustentar a postura pouco ética da democracia “para dentro” e ditaduras “para fora” ou a adoção de um Direito penal do inimigo contra os movimentos de imigração. O “governo” do planeta exige coesão social e inclusão de todos, porque a humanidade não alcançará nunca um padrão de civilização aceitável enquanto houver pessoas (como do Haiti) comendo bolachas de barro (feitas de margarina, sal e argila).

A globalização do planeta (e das comunicações via internet) colocou todos os habitantes terráqueos no mesmo navio. É claro que uma grande parcela dessa população está ocupando os andares de cima. Os excluídos, como sempre, vão para o porão! Mas há agora uma grande diferença em relação aos tempos passados: agora eles possuem o domínio do casco do navio. Qualquer furo nesse casco afeta todos. Comer bolacha de barro, derrubada de torres em Nova York … tudo isso retrata grandes furos no casco do nosso navio planetário e globalizado. Ou cuidamos, ou todos nos afundamos. Não há outra alternativa possível.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito penal pela Universidade de Madri e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

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