Esquerda, direita e o ideal da igualdade na América Latina

1. Direita e esquerda ainda existem?

É do ano de 1994 o pequeno-grande livro de Norberto Bobbio ?Destra e Sinistra – Ragioni e significati di uma distinzione política?, no qual, já no prefácio, pergunta: ?…direita e esquerda ainda existem? E se existem ainda, e estão em campo, como se pode dizer que perderam completamente o significado? E se ainda têm um significado, qual é ele?? (Editora Unesp,1995).

Estas indagações continuam atuais no quadro político da América Latina, após as vitórias do lider indígena Evo Morales, na Bolívia, e da médica Michelle Bachelet, no Chile, ambos socialistas.

E da perspectiva de vitória no México, Peru e Nicarágua, dos também socialistas Andrés Manuel López Obrador (ex-prefeito da cidade do México), Ollanta Humala (ex-militar) e Daniel Ortega (ex-presidente sandinista), com a somatória dos presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Nestor Kirchner (Argentina), Tabaré Vazques (Uruguai), Nicanor Duarte (Paraguai) e Luiz Inácio Lula da Silva, projeta-se um amplo leque de centro-esquerda.

Se se admite que este é um quadro político à esquerda, qual o seu significado, como pergunta Bobbio, na realidade latino-americana?

2. Poder pelas armas, poder pelo voto

Antes de responder a essa pergunta, diferentemente da ascensão da direita e ultradireta ao poder na América Latina, nas décadas de 60/70, pela violência das armas, na fase das ditaduras militares, a vitória da esquerda e da centro-esquerda se caracteriza por uma disputa democrática, da escolha pelo voto, da tentativa de superação do neoliberalismo, portanto legítima expressão do povo.

Neste sentido, segundo Friedrich Müller, em sua obra ?Quem é o povo? (Editora Max Limonad, 2000), o termo democracia não deriva apenas etimologicamente de povo. Estados democráticos chamam-se governos ?do povo?; eles se justificam afirmando que em última instância o povo estaria ?governando?. Neste sentido, é como quer a Constituição Federal de 1988: ?Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente…?.

Isto significa que legitimados pelo voto popular, os governos de esquerda e de centro-esquerda estão autorizados a promover as mudanças necessárias ao avanço no plano dos direitos sociais.

3. Postura diante do ideal da igualdade

Retornemos ao significado de esquerda, segundo Bobbio: ?…resulta que o critério mais freqüentemente adotado para distinguir a direita da esquerda é a diversa postura que os homens organizados em sociedade assumem diante do ideal da igualdade, que é, com o ideal da liberdade e o ideal da paz, um dos fins últimos que os homens se propõem a alcançar e pelos quais estão dispostos a lutar? (obra citada).

Se estes parâmetros são aceitos igualdade, liberdade, paz diante de cada um dos governos já em desdobramento Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela, Paraguai e dos programas dos recém-eleitos Chile, Bolívia e das propostas dos candidatos México, Peru, Nicarágua pode-se fixar que se caracterizam como de esquerda e, assim, em um projeto de efetiva caminhada de democracia e justiça social?

Para esta resposta, a análise política está diretamente ligada com a análise econômica e o resultado no campo dos direitos sociais e de sua efetividade.

4. As tarefas da igualdade no Chile

No Chile, destaque-se que a socialista Bachelet derrotou Piñera, candidato da direita apoiado por grupos econômicos que representam 81% do produto interno bruto chileno.

Ela assinala suas primeiras medidas a partir de sua posse a 11 de março: ?Tenho um plano de 36 medidas que cumprirei nos primeiros cem dias. Minhas três primeiras medidas são: o reajuste das pensões mais baixas, o acesso automático às pensões assistenciais e a gratuidade para os maiores de 60 anos nos hospitais públicos. São medidas concretas, enquanto avançamos nas restantes, que incluem a reforma do sistema de pensões, com o envio de um projeto de lei no segundo semestre?.

No plano da igualdade, Bachelet é enfática: ?Obviamente, a distribuição de renda não se resolve por completo em um governo, é uma tarefa para vários. Temos contribuído para diminuir fortemente a pobreza, que era de 44% em 1990, hoje é de 18%. Sem dúvida temos avançado, mas se mantém uma relação de 14 a um nos ingressos autônomos dos mais ricos e mais pobres, que não temos reduzido. Trabalharemos através do plano de igualdade de oportunidades para gerar mais empregos e retirar as pessoas da pobreza. Há tarefas com resultados a longo prazo, que vamos iniciar ou consolidar em quatro anos? (edição de El País, 22.01.06).

5. Igualdade até na raça

E, num quadro político ainda mais radicalizado, a vitória e posse de Evo Morales na presidência da Bolívia projeta a luta pela igualdade social a um patamar extremamente elevado.

Indígena, líder cocalero, eleito já no primeiro turno, tem como premissa básica que ?sem segurança social não há segurança jurídica?, lema que sustentará a convocação da Assembléia Nacional Constituinte.

Já a composição do Ministério quer ressaltar a igualdade numérica entre indígenas e brancos, além de acentuar o caráter classista-proletário ao nomear Casimira Rodríguez como Ministra da Justiça, mestiça, ex-empregada doméstica e presidente do sindicato de seu segmento profissional, como a marcar a ruptura racial em curso na Bolívia. Ou na figura indígena de David Choquehuanca, Ministro das Relações Exteriores, ex-dirigente da Confederação Sindical Única de Camponesa da Bolívia, ao afirmar ?todos os países temos de ajudar-nos, contribuir com a integração, com a luta contra a pobreza? (O Estado de S.Paulo, 27.01.06).Eis a igualdade até na raça.

6. As eleições no Brasil e a exclusão social

A eleição de 2002 e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva estão neste contexto. E nas eleições deste ano, onde se repetirão de modo mais agudo e extremado os debates sobre os pontos fundamentais dos direitos sociais, no centro dos quais está a questão da igualdade.

Ou seja, uma vez mais, onde estarão a esquerda e a direita; se se mantiveram e ampliaram os direitos sociais; quais as reais possibilidades de serem ainda mais expandidos enfim, como eliminar a odiosa exclusão social.

Eis que na América Latina, esquerda e direita estão situadas exatamente diante das posições que adotam face as políticas em relação aos excluídos socialmente.

7. Hobsbawn, a crise histórica

E este embate está focado em um ponto mais complexo, como o notável Eric Hobsbawn já assinalou: ?Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou pelo menos é razoável supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente como internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica? (in ?Era dos Extremos?, Companhia das Letras, 1995).

Se este raciocínio está correto, esquerda e centro-esquerda neste momento de crise histórica, não mais se referenciam no passado, de como foram os governos de esquerda e de centro-esquerda. Vinte ou trinta anos após os governos militares, sucedidos pelos neoliberais, retoma-se a jornada, mas por outros caminhos.

Se o conceito permanece igualdade, liberdade, paz agora ele se expressa diante de um mundo de dominação dos grandes grupos econômicos internacionais e nacionais que detêm não apenas os meios de produção, mais os meios financeiros e a tecnologia avançada.

8. Capra, pobreza, as redes do capitalismo global

Ao examinar o contexto em que se formam ?as redes do capitalismo global?, Fritjof Capra conclui: ?O capitalismo global fez aumentar a pobreza e a desigualdade social não só através da transformação das relações entre o capital e o trabalho, mas também por meio do processo de ?exclusão social?, que é uma conseqüência direta da estrutura em rede da nova economia. Á medida em que os fluxos de capital e informação interligam redes que se espalham pelo mundo inteiro, eles ao mesmo tempo excluem dessas redes todas as populações e territórios que não têm valor nem interesse para a busca de ganhos financeiros. Em decorrência dessa exclusão social, certos segmentos da sociedade, certos bairros, regiões e até países inteiros tornam-se irrelevantes do ponto de vista econômico? (in ?As Conexões Ocultas?, ed. Cultrix, 2002).

Eis, assim, a tarefa central: a luta para eliminar a exclusão social, proposta central dos governos dos povos que lutam pela igualdade em todos os planos e sistemas.

9. Os direitos básicos na América Latina

Portanto, os direitos básicos na América Latina do trabalho, da vida em sociedade não são uma mera projeção de projetos de reformas propostas pelo capital. Devem ser a parte viva que sustenta a própria existência humana, ou seja, proposições ligadas diretamente com o ser e o existir de milhões de pessoas.

Como olhamos, como agimos, como sentimos esse processo é que nos diferenciará diante de opções políticas e econômicas. Nessas ações e nesses sentimentos poderemos responder de que lado nos posicionamos.

E.mail: edesiopassos@terra.com.br

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo