Escrever é fogo!

Delson Biondo

Todo aquele que escreve procura tanger alguma coisa impalpável em seu interior: uma idéia, uma imagem, uma emoção ou um desejo. Escrever é fundamentalmente garimpar algo dentro de nós mesmos. Mas também é ferir o silêncio, é semear no deserto, é inventar sonhos (imperfeitos, muitas vezes, mas igualmente caprichosos). Vários escritores descreveram a angústia de estar diante de uma folha em branco e alguém disse, certa vez, que escrever é muito fácil: basta ficar olhando fixamente para o papel até que brote sangue de sua testa.

Para alguns, escrever pode representar uma espécie de catarse: um esvaziamento por completo de tudo o que sabemos, supomos ou suspeitamos, uma purgação total de todas as nossas forças. Para outros, pode ser o contrário: uma constante acumulação de experiências, uma fusão de saberes conscientes e inconscientes que preenchem o nosso vazio. Há ainda os que sentem o ato da escrita como a entrada em um estado de embriaguez, o acometimento repentino de um transe psíquico que nos transporta a um universo de ilusão, a um estado de poesia. Escrever pode ser simplesmente um modo especial de ver o mundo, de contemplar a beleza das coisas ou a tragédia da vida, pode ser um ato de paixão ou um estado de espírito que nos predispõe ao prazer. Por outro lado, pode significar também um processo de rebeldia, de descontentamento, de protesto e de crítica, uma tentativa de impor organização àquilo que se percebe como um caos, neste caso, escrever é penetrar num estado de suprema lucidez. Contudo, a mais peculiar das metáforas é a de Vargas Llosa. Para ele, escrever é um ato de exibicionismo em que o romancista realiza um strip-tease ao contrário: senta-se nu diante do papel em branco e começar a exibir, não seus encantos, mas seus demônios, suas obsessões, culpas e rancores. Pouco a pouco, vai cobrindo com palavras a parte mais feia de si mesmo, para terminar completamente vestido no final da encenação.

Segundo Albert Camus, um filósofo realiza, primeiro, um trabalho com as idéias, pensa segundo as idéias, faz uma organização prévia do que a sua razão descobriu e encontra a sua verdade, para só então, no final, expressá-la com tinta sobre o papel. No entanto, para um escritor, escrever é o seu primeiro impulso. Quando ele começa a criar, ainda não tem uma verdade previamente formulada, ele só encontra a sua verdade através daquilo que escreve. Porque o escritor, como qualquer outro artista, só sabe o que realmente tem a dizer depois que organiza e materializa em palavras, ou obras, as suas intuições.

Escrever é de certa forma lutar consigo mesmo, pelejar contra a nossa inércia, é saber transformar melancolia (rebeldia, paixão ou convicção) em histórias concretas. Porque todo escritor necessita perseverar para conseguir criar. E como toda criação é uma busca, ao escrever, cada um persegue algo diferente. Por exemplo: enquanto um cientista procura respostas, um poeta sai em busca do próprio "eu" e, às vezes, persegue também o "tempo perdido". Quando um cientista escreve, sabe que sua obra pode ser efêmera, que ela é apenas um passo a mais no longo trajeto que conduz à verdade. Porém, quando um artista escreve, sabe que sua obra é definitiva, que ela completa e justifica a sua existência, pois na escrita ele se encontra e através dela acha o seu ego.

Talvez seja por isso que toda forma de arte é uma tentativa de nos aproximar da eternidade. Porque, enquanto a ciência, com suas descobertas, abala os pilares da vaidade humana, isto é, enquanto a ciência se esforça em comprovar que o homem é apenas um ser deste mundo e que, portanto, está sujeito às leis e limitações deste mundo, a arte faz justamente o contrário: se empenha em exibir aquilo que nos diferencia de todos os outros seres deste planeta, esforça-se para provar que o homem é um ser metafísico e que o seu poder de criar e imaginar transcendem este mundo.

Se a ambição extrema de todas as artes é aspirar à imortalidade, para que uma obra permaneça é preciso que ela tenha transcendência, ou seja, consiga sobrepujar seus limites contextuais de espaço e de tempo. Em literatura, contribuem para essa transcendência: a eficácia da forma, a importância e a beleza do tema, mas sobretudo a inteligência, a tenacidade e o talento de quem escreve. Vargas Llosa disse, certa vez, que um romancista não pode escolher os seus demônios, mas tem o poder de decidir o que fazer com eles. Assim sendo, todo escritor é quase sempre o principal responsável por sua mediocridade ou sua genialidade.

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