Atordoado com as diárias notícias de homicídios, latrocínios, seqüestros relâmpagos, assaltos etc., o sujeito, dono de uma joalheria, no dia do pagamento dos salários dos funcionários, estando em mãos com R$ 100.000,00, ao ver o súbito ingresso de um rapaz na loja, acreditando tratar-se de um assalto, reage com seu ?trêsoitão? desferindo-lhe seis tiros, letais. Comprova-se, posteriormente, que o rapaz tinha ido à loja em busca de emprego e não para assaltar.

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Todos nós, caro leitor, pelo simples fato de sermos humanos, estamos sujeitos a erros. O que interessa, por hora, é saber como o Judiciário deve tratar o caso.

Será que o dono da loja agiu em legítima defesa? Ou será que não, pois o empresário apenas ?pensou? que estivesse na iminência de ser assaltado, o que implica aplicarmos à hipótese o § 1.º, artigo 20, do Código Penal, segundo o qual ?é isento de pena quem, por erro plenamente justificável pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima??

Age em legítima defesa quem repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Portanto, não estamos diante de uma hipótese de legítima defesa porque faltam os pressupostos para tanto. Tudo estava no imaginário do empresário, ele apenas ?pensou? que seria assaltado. Estamos, então, diante a hipótese do artigo 20, § 1.º, do Código Penal, devendo o empresário ficar isento de pena caso seu erro tenha sido inevitável de ser percebido antes do ocorrido.

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Para complicarmos um pouco a questão, vamos supor agora que no caso concreto o dono da loja teve a possibilidade de tomar cuidado de averiguar se o rapaz, de fato, iria lhe assaltar, mas assim não o fez, matando o rapaz por conseqüência em erro evitável. Então, a hipótese deve ser tratada, especificamente, com a segunda parte do § 1.º, artigo 20, para quem ?não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido como crime culposo?.

Agora estamos diante um erro evitável, já que estamos deduzindo que o crime só ocorreu porque o empresário não tomou cuidado antes da ação, cuja conseqüência é aplicar-lhe a pena do homicídio, mas na modalidade culposa, conforme estabelece a segunda parte do § 1.º, artigo 20, do Código Penal. Ou seja, o empresário praticou um homicídio com dolo, o que daria ensejo a uma pena de 6 a 20 anos, mas o Código, nesta hipótese de erro evitável, determina que seja excluído o dolo para que seja possível aplicar a pena correspondente ao crime culposo (de 1 a 3 anos).

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O interessante, neste momento, não é a questão de ser justo ou não a redução da pena na hipótese. A questão mais séria é como ser possível uma punição pela modalidade culposa se a ação foi dolosa. O empresário ?quis? matar o rapaz, como então aplicar a mesmíssima pena de quem pratica um homicídio pela imprudência de lubrificar a arma municiada?

Trocando em miúdos a segunda parte do artigo 20, § 1.º, todas as vezes que o agente, por falta de atenção, supõe situação de fato que se existisse tornaria sua ação legítima, ao seu crime, embora praticado com dolo (vontade de matar, p.ex.), exclui-se o dolo para possibilitar a pena do crime culposo, se prevista na hipótese. Em resumo, em caso de erro evitável sobre pressuposto fático de causa de justificação, exclui-se o dolo, punindo-se como se crime culposo fosse.

Ocorre, no entanto, que esta regra para as hipóteses de erro em tela não é melhor solução para o caso. Vejamos:

1) no erro evitável, se não houver o correspondente crime culposo o agente fica impune: o sujeito crê estar sendo ameaçado de morte por um incêndio porque está trancado e quebra a janela, quando na realidade podia sair tranqüilamente pela porta. Seu crime de dano ficará impune porque não existe dano culposo.

2) Vamos supor que o empresário, naquela hipótese de acreditar erroneamente que iria ser assaltado, tivesse atirado contra o suposto rapaz assaltante, sem, no entanto, atingi-lo devido à má pontaria. Teríamos uma tentativa de homicídio, que por se tratar de um erro evitável, excluiria o dolo, cuja conduta, de acordo com a solução dada pelo Código Penal, deveria ser punida como culposa, com o que teríamos configurado uma tentativa culposa, de toda inadmitida no Direito Penal Brasileiro.

3) Agora vamos supor que um determinado empregado do empresário, mesmo sabendo que seu patrão estava enganado quanto à intenção do rapaz ao entrar na loja, mesmo assim, fornece a arma ao patrão para este acabar com a vida do rapaz, porque certa vez o empregado viu sua namorada dançando animadamente no baile com o rapaz. Não há juiz na Terra que pune o empregado (partícipe) pelo homicídio porque a conduta do empresário (autor) teve o dolo excluído pelo § 1.º, artigo 20, do Código Penal (não existe participação em crime culposo!).

4) Vamos supor, ainda, uma hipótese de erro inevitável por parte do empresário, cujo rapaz (vítima) ao ver o empresário apontar-lhe a arma, saca a sua, matando o empresário. Seria inadmissível a legítima defesa por parte do rapaz contra o empresário, porque, de acordo com o dispositivo do Código Penal, a agressão do empresário era lícita, por ter sido excluído o dolo e a culpa (não há legítima defesa contra justa agressão).

Esta regra do erro sobre pressuposto fático de causa de justificação evitável foi estabelecida com a Reforma Penal de 1984. E isso se deu porque, de um lado, o Presidente da Comissão de Reforma tinha um gosto pessoal por uma teoria da Alemanha minoritária e que também no Brasil era por poucos acolhida, e, de outro lado, para dar continuidade ao que já vinha sendo aplicado pelo Código de 1940, o qual também determinava excluir o dolo para punir como se crime culposo fosse, em vez de determinar atenuar a pena. Tudo isso foi declarado posteriormente em obra específica para explicar a Reforma (não se critica, porém, o Presidente da Comissão de Reforma, o saudoso Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Francisco de Assis Toledo. O mal está na teoria adotada).

Antes da Reforma, todavia, o alemão Hans Welzel, o qual deu o último retoque no sistema adotado pelo Código Penal vigente, e também o saudoso jurista brasileiro, Heleno Fragoso (dentre outros ilustres quanto), a época da Reforma, haviam demonstrado uma teoria através da qual, justamente nessa hipótese de erro evitável sobre pressuposto fático de causa de justificação (?agir imaginando uma legítima defesa, por falta de atenção?), somente atenuava a censura da conduta (culpabilidade), notadamente no que se refere à consciência da ilicitude, para que, assim, fosse possível punir o agente com uma pena menos severa que a do crime doloso (equiparada, se fosse o caso, à fixada para um crime culposo), mas não afastando, com essa medida, o elemento volitivo do tipo (o dolo: o querer matar), e sem, conseqüentemente, criar esses problemas de injustiça e impunidade hoje presente com o atual dispositivo do Código Penal.

Diante dessa situação de injustiça e impunidade quando se retira o dolo da conduta em erro evitável sobre pressuposto fático de causa de justificação, ilustres pesquisadores brasileiros, pegando por empréstimo uma suposta solução encontrada por jurisconsultos da Alemanha (Wessels e Jescheck), vêm afirmando que o erro em tela trata-se, na verdade, de um erro através do qual o dolo permanece íntegro, apenas ficando afastado a ?culpabilidade dolosa? quanto o erro é evitável, e igualmente a ?culpabilidade culposa? quando o erro é inevitável.

Em outras palavras, para os pesquisadores brasileiros, o erro sobre pressuposto fático de causa de justificação, quando evitável, atenua a censura sobre a ?consciência da ilicitude dolosa? e igualmente a censura sobre a ?consciência da ilicitude culposa? quando o erro é inevitável.

Louvável a iniciativa do renomado parecerista gaúcho, Cezar Roberto Bitencourt, em conjunto com respeitado professor paulista, Luiz Flávio Gomes, ao criarem para este caso o ?erro sui generis? com o intuito de solucionar o problema com os mesmos efeitos apresentados pela teoria adotada por Welzel. Esta construção, no entanto, é perigosa. E o que há de mais interessante nisso, é que esse ?erro sui generis? vem sendo transmitido nas academias como algo de verdade absoluta, irrefutável. Mas isso é algo explicável: um dos maiores problemas do ensino jurídico na atualidade é o excesso de um racionalismo que prioriza o discurso intelectual em detrimento do óbvio natural.

Em primeiro lugar, com essa construção dos insignes jurisconsultos brasileiros, o tipo que até então é um indício de ilicitude, passa a ser também um indício de culpabilidade dolosa, ou seja, o fato de a moça atirar contra um homem, o que até então é um indício de que na hipótese isso está proibido, passa a ser igualmente um indício de ânimo de matar (embora ela, apenas, esteja com o fim de se defender de um estupro).

Em segundo lugar, em sendo aplicada a ?culpabilidade dolosa?, a qual fundamenta-se, repita-se, no ?ânimo do autor?, estaríamos voltando ao passado com a culpabilidade do autor e com a culpabilidade pela condução de vida, onde se pune o que o autor é e não o que ele fez, ou seja, onde se pune o jornalista porque tem concepções comunistas e não porque ofendeu a honra do Presidente do País aliado ao capitalismo; onde se pune João, não porque furtou laranjas, mas pelo fato de ter aprendido isso com seus vizinhos da favela, como algo de sobrevivência.

Portanto, de um lado, temos que o ?erro sui generis? reverte o processo evolutivo para preencher uma lacuna de punibilidade existente no dispositivo em tela, o que gera perigosos conflitos, inclusive despertando a volta do velho dolo mau dos romanos; de outro lado, temos que os julgadores não podem adotar a solução apresentada por Welzel, sob pena de praticarem ilegalidade, e com isso a segunda parte do § 1º, artigo 20, do Código Penal continua aí, gerando seus problemas de injustiça e impunidade, seja no que diz respeito à impunidade quando não existe o correspondente crime culposo, seja a absurda hipótese de tentativa culposa, seja na impunidade do participe do autor do erro evitável, seja ainda na impossibilidade da vítima do erro repelir a agressão do sujeito em erro.

O que fazer? Das duas, uma: ou o legislador altera o dispositivo com a solução correta, ou (além dos problemas de injustiça e impunidade apontados) os colegas de defesa continuam utilizando o tratamento privilegiado do atual efeito gerado pelo erro sobre pressuposto fático de causa de justificação evitável para reduzir a pena de policiais que atuam contra civis, suspeitos ou não (quando se descobre que o ?auto de resistência? elaborado pelo policial assassino foi forjado o que geralmente ocorre), deixando aquela amarga sensação de violação de Direitos Humanos, pela insuficiente tutela da vida humana.

Edson Pereira é advogado. edsonpsjr@yahoo.com.br