Era uma vez, a infração de menor potencial ofensivo…

1. A INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO: UMA ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA…

Sobre a infração de menor potencial ofensivo, uma pergunta se impõe: qual a finalidade do legislador constituinte ao se valer do conceito de infração de menor potencial ofensivo no artigo 98, inciso I, da CR e, ao mesmo tempo, correlacioná-lo a ideia de Juizados Especiais Criminais?

Sugere-se, aqui, uma resposta: tentar resgatar a legitimidade do Poder Judiciário perante a sociedade contemporânea. Isto mesmo, se o Poder Judiciário é a última tábua de salvação da dogmática jurídica[2], em meio ao espetáculo da diluição da tripartição de poderes, os Juizados Especiais se constituem em uma das mais recentes estratégias de sobrevivência do moribundo Estado Moderno. Esse Estado que, no século XIX, buscou se legitimar por meio do Poder Legislativo – e, para isso, basta observar a França que sucedeu à Revolução Francesa e o seu minucioso Código Civil de 1804 (Código de Napoleão) -, e que hoje, no século XXI, procura justificar a sua existência, utilidade e legitimidade a partir do Poder Judiciário. Mas, no momento em que a legitimidade deixa de ser sinônimo de legalidade, surge para o Estado e o seu Poder Judiciário um novo desafio, o desafio de reconstruir o seu discurso de justificação. O desafio de sobreviver!

E este desafio não é fácil, vez que o que se assiste hoje é exatamente a crise do Poder Judiciário. Se é certo afirmar que nunca antes o Poder Judiciário foi tão valorizado, não é menos certo admitir que ele nunca se viu tão questionado. Todo bônus traz consigo os seus ônus, e com o Judiciário não é diferente. A luz que põe em evidência a estrela da companhia teatral do Estado Moderno é a mesma que lhe expõe às vaias da plateia[3]. Ora, não é o Poder Judiciário que é acusado de lento? Não é o Poder Judiciário que é questionado pelas suas decisões variáveis e imprevisíveis? Não é o Poder Judiciário que é achincalhado pela circunstância de que os acusados não são devidamente punidos? Não é Poder Judiciário que é criticado pelos seus altos salários e pela estrutura altamente dispendiosa aos cofres públicos? Enfim, não é o Poder Judiciário que, muitas vezes, acaba por agravar o conflito que deveria, em tese, solucionar?[4]

E é em meio a este cenário que os Juizados Especiais Criminais surgem como a estratégia do Estado na disputa pela legitimidade. Uma disputa travada, aparentemente, com as instâncias ilícitas de controle. É dizer, os Juizados surgem como a mais nova arma do Estado na guerra pela manutenção do monopólio do poder de punir. Uma guerra que caracteriza a sociedade contemporânea e que traz alguma preocupação ao Estado Moderno, na medida em que este, no âmbito criminal, nunca antes se viu tão incomodado pela concorrência das instâncias ilícitas de controle social, a exemplo das organizações criminosas. E, neste contexto, melhor se compreende institutos como o da infração de menor potencial ofensivo.

Institutos que funcionam como chaves de acesso a uma nova tecnologia de preservação do monopólio do poder de punir do Estado. Uma tecnologia que abrange, por exemplo, a transação penal[5], a qual é vendida como uma ferramenta ágil que propicia a rápida “resolução” do conflito, mas que, na verdade, não passa de uma mercadoria em meio a um jogo de barganha[6], na luta pela manutenção do poder de punir. Em outras palavras, o Estado dá a impressão de que cede uma parte do seu poder de punir à vítima, por exemplo, e em troca garante a sua sobrevivência, isto é, a legitimidade do seu monopólio.

 Sendo assim, convém formular a seguinte pergunta: o Estado está vencendo esta guerra? Ao que tudo indica não, seja porque os juizados não apresentam a celeridade e a efetividade que deles se espera, seja porque não parecem ter ajudado em nada a conter o crescente e preocupante número de infrações penais que não chegam ao conhecimento do Estado. Aliás, o que se desconfia é que os juizados acabaram por agravar o problema das cifras ocultas, vez que a sua instituição e a definição de infração de menor potencial ofensivo, ao que parece, terminaram servindo de incentivo para o aumento desta situação.

E o pior é que, se essa premissa estiver certa, os juizados que foram instituídos com a finalidade de aproximar o Estado da população, parecem está ampliando, ainda mais, o fosso que os separa. Um fosso danoso ao controle dos conflitos criminais, na medida em que esses deveriam, em tese, serem decididos pelo Estado por meio do caminho necessário[7] do processo penal. O que, por sua vez, compromete a credibilidade de qualquer política de segurança pública e propicia uma desconfiança ainda maior quanto ao aparato do Estado, em especial no que se refere à polícia. Qual é o embasamento racional e estratégico de uma política de segurança pública fundada em dados sem qualquer correspondência com a realidade social?

2. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E AS INSTÂNCIAS ILÍCITAS DE CONTROLE SOCIAL.

E a guerra que é travada pelo Estado é, de fato, contra as instâncias ilícitas de controle social? O que parece é que, em verdade, não há uma guerra entre o Estado e as instâncias ilícitas de controle. O que parece é que os Juizados Especiais Criminais não substituem estas instâncias, nem estas representam uma forma de poder paralelo, como relata Gabriel de Santis Feltran, referindo-se ao Primeiro Comando da Capital (PCC)[8]. Estes dois organismos de controle social, os juizados e as instâncias ilícitas, antes parecem concorrer entre si e, ao mesmo tempo, completar-se um ao outro, como etapas de uma escala de resolução de conflitos. Concorrem porque coexistem em um mesmo espaço de conflito, e complementam-se porque ambos se aproveitam um do outro.

É certo que a resolução levada a efeito pelas instâncias ilícitas de controle não são reconhecidas pelo direito, nem tampouco funcionam como mecanismos de mediação. Todavia, não é menos certo que elas acabam por filtrar alguns dos muitos conflitos que chegariam aos juizados e que acabariam por abarrotar ainda mais as prateleiras do Poder Judiciário. Sendo assim, é inegável que, se o Estado não incentiva a existência de tais instâncias ilícitas de controle, ele também se aproveita, e muito, da existência delas.

E com os juizados especiais criminais isso não é diferente. Afinal, a infração penal de menor potencial ofensivo ao mesmo tempo em que amplia os domínios do poder punitivo do Estado, símbolo de uma política criminal fundada na teoria das janelas quebradas[9], convive e se aproveita das instâncias ilícitas de controle. Nesse sentido, a concepção retórica em torno da dogmática jurídica guarda grande afinidade com a concorrência travada entre o Estado (representado pelos juizados especiais criminais) e essas instâncias ilícitas.

Isto porque a concepção retórica acerca da dogmática jurídica tem como um de seus objetivos, exatamente, enfrentar o problema da legitimidade que caracteriza a sociedade complexa atual[10]. E, por sua vez, o problema da legitimidade é, em última análise, o problema da disputa estabelecida entre o Estado e o “mundo do crime” em torno do que é socialmente legítimo[11]. Definir o que é socialmente legítimo é, antes de tudo, um risco ao qual o Estado e o seu monopólio do poder de punir se encontram sujeitos, vez que esta definição passa pelo questionamento do monopólio estatal sobre o poder de punir. E é em meio a esse risco que a concepção retórica acerca da dogmática jurídica se torna uma importante aliada do Estado nesta batalha.

 Um excelente exemplo da contribuição que uma concepção retórica acerca da dogmática jurídica oferece, é a análise cética que ela tem capacidade de fazer acerca dos juizados e do conceito de infração de menor potencial ofensivo. Uma análise que pode ser empreendida sobre a própria produção da sentença por meio do procedimento sumaríssimo. Afinal, como sustentar o discurso da busca pela verdade, seja lá ela qual for[12], diante de um procedimento sumaríssimo, uma estrutura inquisitorial e uma instrução demasiadamente restringida[13]? Resta claro que a sentença não é um ato de certeza, mas, sim, de confiança[14]. Ora, quando se percebe que é a confiança que legitima a norma jurídica que resulta da sentença, logo se conclui que decidir não é encontrar a verdade, e, sim, persuadir quem se encontra sujeito à decisão. Provocar a aceitação daqueles que se encontram submetidos à decisão.

O juiz não é um padre que diz a verdade, porque foi tocado por Deus, antes se mostra um político que busca convencer o seu eleitorado, as partes. Eis, então, o ponto fundamental no que toca à legitimidade e a disputa em torno dela na sociedade contemporânea. Legítimo não é o que se encontra definido em lei, mas, sim, aquilo que tem a capacidade de despertar a confiança dos sujeitos envolvidos no conflito, do qual a infração de menor potencial ofensivo é um exemplo. Por conseguinte, o ponto fundamental da dogmática jurídica contemporânea é conseguir, na produção da norma jurídica, despertar a confiança nos sujeitos, estejam eles envolvidos, ou não, no conflito levado a juízo. É dizer, o problema fundamental do Estado na atualidade é, ao mesmo tempo, despertar a confiança da sociedade e fragilizar a confiança que as instâncias ilícitas de controle provocam, por exemplo, na periferia de São Paulo[15]. Afinal, na disputa pela legitimidade, a confiança é a mais importante de todas as armas.

 


[1] Professor – Assistente na disciplina de Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Direito Penal da Universidade Salvador – UNIFACS; Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador – UCSAL; Professor Convidado da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia – FESMIP. Professor convidado da Especialização em Ciências Criminais do JusPodivm; Professor Convidado da Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito vinculada ao PPGD-UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA – Universidade Federal da Bahia na Linha de Limites do Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial – uma irracionalidade disfarçada. Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL. Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada do INSS. Autor dos livros: AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. A importância dos atos de comunicação para o processo penal brasileiro: o esboço de uma teoria geral e uma análise descritiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 215 p. AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Ato de Decisão Judicial: Uma Irracionalidade Disfarçada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, 311p. Área de dedicação e pesquisa: Direito Penal, Direito Processual Penal, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito.

[2] OLIVEIRA, Ana Carla Farias de; NASCIMENTO, Guadalupe Feitosa Alexandrino Ferreira do Nascimento. Dogmática jurídica na produção acadêmica nacional: estado da arte. No prelo, passim.

[3] Se se admitir que a plateia, em questão, é o povo, surge, então, uma das mais importantes questões da ciência política, relativa à democracia: quem é o povo? Essa é a questão que atormenta Friedrich Müller. Nesse sentido, consulte-se MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. Tradução: Peter Naumann. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad, 2003, passim. E, ainda com espeque na lição de Friedrich Müller, convém indagar: quem é o povo do qual a Constituição fala? Quem pertence ao povo, se a população não quer (ou não pode) participar? Como adverte Adeodato, a “unidade do povo, assim como a unidade entre Estado e Constituição, não parecem algo óbvio, sobretudo se o povo não pode ou não quer ‘participar’. A grande questão passa a ser justamente ‘quem’ pertence ao povo, quem é o povo, essa é a questão fundamental da democracia. Mais crucial ainda se torna esse problema com a participação cada vez menor dos cidadãos nas eleições das democracias centrais, quando até o Estado social e democrático de direito encontra dificuldade em despertar fidelidade e compromisso em cidadãos que não se consideram beneficiários dele”, cf. ADEODATO, Op. cit., p. 153.

[4] “Compreende-se porque as instituições penais de privação de liberdade (e sócio-educativas, no caso dos adolescentes) terminam por agravar a sensação de desvinculação social em relação ao mundo ‘legítimo’ e, assim, reforçam a referência do ‘mundo do crime’ nas trajetórias. (…) Este circuito monotemático, que fortalece a identidade do ‘criminoso’, aparece justamente quando o Estado passa a mediar suas relações sociais”. Cf. FELTRAN, Gabriel de Santis. O legítimo em disputa: as fronteiras do mundo do crime nas periferias de São Paulo. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 1, 2008, p. 116.

[5] Para uma crítica contundente à transação penal, faz-se necessário estudar a obra de Geraldo Prado. O autor critica a transação penal a partir dos seguintes pilares, são eles: a inquisitorialidade da transação penal, a desigualdade entre os sujeitos envolvidos, o desrespeito à autonomia da vontade do suposto autor do fato aparentemente delituoso e a privação do devido processo legal por meio das técnicas de sumarização. Sobre o assunto consulte-se PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 173-220.

[6] O jogo de barganha é um dos ramos da teoria dos jogos de maior interesse prático, se não for o maior. Cf. BIERMAN, H. Scott; FERNANDEZ, Luis. Teoria dos Jogos. 2ª edição. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2010, passim.

[7] Sobre o princípio da necessidade no processo penal, consulte-se LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.23-26.

[8] O Primeiro Comando da Capital conhecido tanto pela sigla PCC como pela alcunha de “Partido”, é uma das organizações criminosas mais importantes do Estado de São Paulo. As fronteiras do mundo do crime nas periferias de São Paulo e, por consequência, a atuação do PCC, é o tema da linha de pesquisa de Gabriel Feltran. Nesse sentido, consulte-se: FELTRAN, Op. cit., p. 93.

[9] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Teoria das janelas quebradas : e se a pedra vem de dentro? in Revista de Estudos Criminais. v. 3, fasc. 11.  Porto Alegre: Notadez/ITEC, 2003, p. 23-29.

[10] ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica – Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 189.

[11] A expressão mundo do crime é aqui empregada como sinônimo das instâncias ilícitas de controle. O uso dessa expressão é feito aqui em referência ao sentido que Gabriel Feltran atribui a tal locução. Segundo ele, mundo do crime é “o conjunto de códigos e sociabilidades estabelecidas, prioritariamente no âmbito local, em torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos e furtos”. Cf. FELTRAN, Op. cit., p. 93. Mais adiante, referindo-se à disputa pela legitimidade, Feltran arremata, afirmando que “a política não se resume à disputa de poder em terrenos institucionais, mas pressupõe um conflito anterior, travado no tecido social, constitutivo da definição dos critérios pelos quais os grupos sociais podem ser considerados legítimos. É nessa perspectiva que a disputa pela legitimidade que emerge das fronteiras do ‘mundo do crime’, nas periferias de São Paulo, sugere significados políticos bastante mais amplos”, cf. FELTRAN, Op. cit., p. 123.

[12] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza” de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen  Juris, 2002.

[13] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Manifesto contra os juizados especiais criminais (uma leitura de certa “efetivação” constitucional)”. In: SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 347-438.

[14] “A retórica se fundamenta na confiança. Esta frase parece revelar ingenuidade ou intenções demagógicas. Na Alemanha pode-se dizer: retórica causa desconfiança. Também no passado o apoio a este ressentimento foi declaradamente um dever do filósofo. Os alemães nunca demonstraram um talento especial para com a ‘gaia ciência’ e a retórica é justamente uma das disciplinas desta”. Cf. BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito. Tradução: João Maurício Adeodato. Revista Brasileira de Filosofia, n. 163, fasc. 39. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1991, p. 175-184.

[15] “A depender do problema enfrentado, um jovem de Sapopemba pode, por exemplo, propor uma ação trabalhista ou exigir justiça em ‘tribunais’ do PCC; pode integrar os atendimentos de uma entidade social ou pedir auxílio ao traficante”. Cf. FELTRAN, Op. cit., p. 123.

 

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