Maria Francisca Carneiro

Ensino jurídico: modelo e padrão

1. MODELO E PADRÃO

Antes de nos atermos aos modelos e padrões de ensino jurídico, precisamos estabelecer um acordo semântico sobre tais termos, cujos significados não são unânimes entre os tratadistas. Ademais, sofrem variações entre as diferentes áreas do saber.

Para efeitos deste artigo, vamos convencionar que o modelo é rígido, é uma cópia pré-formatada, estanque e estandartizado; enquanto o padrão é flexível, plural e comporta espaços para a invenção e a criatividade e, principalmente, para a avaliação.

Fundamentemo-nos em Maury Rodrigues da Cruz e Antonio Grimm, quando conceituam:

Padrão de comportamento conjunto de elementos que serve como referência para avaliação de comportamento; exemplo adaptado, contextualizado; estabelece o que é aceitável ou não na conduta de uma dada cultura; sistema de idéias; referencial.

Padrões existenciais os padrões existenciais que movem qualquer grupo social são: 1) ação; 2) pensamento; 3) sentimento. Estes três elementos estão vinculados a um nível informacional, comunicacional e consequentemente computacional.

Toda pessoa está permanentemente agindo, pensando e sentindo. Agir, pensar e sentir estão vinculados a processos auto-referentes e exo-referentes, dinâmicos no nível de computação interna.

(…) Modelo científico interpretação ou representação simbólica e esquemática que permite explicar e entender um conjunto de fenômenos; hipótese; Modelo de comportamento exemplo fechado, copiado e não contextualizado; exemplo copiado em sua forma; fôrma; cópia (diferente do padrão)(1).

Assim, vemos que os padrões são referenciais abertos, enquanto os modelos são cópias fechadas. Examinaremos a seguir alguns modelos e alguns padrões de ensino jurídico e de universidade, lembrando que essa análise não se pretende exaustiva.

2. MODELO DE ENSINO JURÍDICO

A crise do mundo contemporâneo atinge também o Direito, aí incluídas as suas estruturas de ensino. Há certa instabilidade no Direito, que decorre das transformações sociais e repercute em uma dinâmica legisferante, onde surgem constantemente novas leis, algumas vezes contraditórias e revogando-se umas às outras.

Ora, isto repercute na relação ensino/aprendizagem do Direito, pois é pela educação jurídica que a vida social se ordena e os valores se hierarquizam, de modo a embasar a tomada de decisões e referenciar os comportamentos individuais e dos grupos sociais.

Para entendermos esse contexto, temos que volver os olhos ao início dos cursos de Direito em nosso país. Para José Eduardo Faria, “a criação dos cursos jurídicos no Brasil reflete uma mentalidade dominante na primeira metade do século XIX, constituída pelo individualismo político e pelo liberalismo econômico”(2).

Para o referido autor, a decisão de fundar duas faculdades de Direito, uma em Recife e outra em São Paulo, não se desvincula do contexto político da época onde se tinha um Estado que precisava afirmar-se de modo independente e, para tanto, necessitavamm de elites jurídico-políticas que controlassem os seus interesses e atendessem às suas próprias necessidades.

Para José Eduardo Faria, na obra referida, as elites forneceram o fundamento ideológico dos cursos jurídicos no Brasil, embora esse fundamento ideológico não fosse de todo homogêneo, pois havia também segmentos emergentes da sociedade civil, em especial os donos de engenho e os coronéis que se antepunham à elite de herança cultural imperial. Assim, com a fundação dos cursos jurídicos no Brasil, o Absolutismo vai sendo substituído pelo liberalismo.

Todavia, a par do liberalismo que se instalava, o governo controlava os recursos, o currículo, o método de ensino, a nomeação dos professores, os programas e os livros(3).

Por essa razão, eram formados operadores do Direito conservadores, que tendiam a perpetuar os interesses da elite, com raras exceções. Era o modelo do ensino dogmático.

O ensino jurídico vai se tornando cada vez mais técnico e apartado da realidade social, verificando-se a cisão entre a teoria e a prática. Cria-se desta forma, uma grande distância entre os valores professados nas faculdades de Direito e os professados na realidade social.

Assim, “o Direito é visto como estrutura imutável, ao invés de ser encarado como um processo de adaptações entre fatos e valores em modelos normativos relacionados às necessidades de mudança da sociedade”(4).

A formação do bacharel em Direito era, pois, dogmática, uniforme, elitista e conservadora. A ênfase dogmática sobre os Positivismo Jurídico faz com que disciplinas como Sociologia e Filosofia sejam apenas propedêuticas e a hermenêutica e os métodos críticos de pensamento não sejam contemplados nos currículos.

Vale dizer que, nesse caso, os cursos jurídicos não são muito mais do que o mero estudo das leis e dos institutos jurídicos, sem indagações críticas e quase sempre desvinculados da prática. O conhecimento adquirido pelos alunos é sobretudo descritivo e linear. Desse modo, fica assegurada a reprodução das estruturas sociais vigentes.

O método de ensino dogmático consiste basicamente em aulas expositivas e conferências, o que é um modelo e não um padrão, conforme vimos no início deste trabalho.

O Professor Doutor José Sebastião Oliveira, em seu brilhante artigo intitulado “O perfil do profissional do Direito neste início de século XXI”(5), faz uma análise detalhada e minuciosa da história e dos modelos de ensino jurídico, lecionando que são basicamente três tipos de modelos, quais sejam:

Modelo cultural ou humanístico: Dotado de grande cultura humanista, mas não resolve problemas e casos, ou seja, questões jurídicas. Trata-se de um modelo que ensina a pensar e criar o Direito, mas não guarda relação estreita com o direito processual, pois não busca a solução de casos e problemas.

Modelo profissionalizante ou técnico informativo: Trata-se de um modelo informativo, visando à formação do jurista como mero operador do Direito, ou seja, totalmente dirigido à prática forense. Apresenta uma postura positivista.

Modelo misto-normativo ou de formação integral: visa à formação de um jurista integral, tendo como característica peculiar a forte formação humanística no início do curso e forte formação profissional no final do curso. É o modelo ideal de ensino jurídico.

3. PADRÃO DE ENSINO JURÍDICO

Antes de qualquer coisa, um padrão de ensino deve conter um projeto político-pedagógico, voltado para diversidade dos eixos sociais, econômicos, políticos e culturais.

Esse projeto deve relacionar criticamente o passado, o presente e o futuro, como obra aberta e transdisciplinar. Leciona Maury Rodrigues da Cruz que “esse projeto político-pedagógico implica fazer construção crítica pedagógica pela educação, ou seja, fazer apoio ao indivíduo inteligente, para que ele possa continuadamente fazer o exercício da adaptação, alcançando a significação do momento epocal em que está tendo consciência”(6).

Portanto, padrão é projeto político-pedagógico, que implica crítica, adaptação e evolução. Vejamos agora um padrão proposto por Álvaro Melo Filho, para o ensino jurídico no século XXI, qual seja:

a) determinar o que será exigível dos profissionais jurídicos na primeira parte do próximo milênio e, ao mesmo tempo, propiciar aos formandos conciliar o saber prático com o saber fático, de modo a romper com a dicotomia entre teoria e prática, utilizando o conhecimento jurídico para interferir e modificar essa prática;
b) identificar e catalogar as habilidades necessárias às funções que os alunos irão desempenhar num mundo em permanente ebulição em que a referências às idéias e aos valores se esbatem e são substituídas com inusitada velocidade;

c) congregar as informações e habilidades indispensáveis em unidades disciplinares, para ministração intra e extra sala de aula, bem como para ensejar uma “educação jurídica continuada”;

d) ultrapassar os limites estreitos do texto legal, repudiando só ensino dogmático de posições doutrinarias e não ficar adstrito à jurisprudência, sumulada ou não;
e) mobilizar e dotar os docentes do preparo e proficiência requeridas para a “tarefa sem fim” de ensino do Direito numa sociedade onde a globalização exige conduta de indagação, análise, problematização e protagonismo diante de situações novas, a par de um tratamento metolodológico interdisciplinar e contextualizado dos temas que sejam juridicamente relevantes(7).

É o próprio Álvaro Melo Filho quem diz, citando Calamandrei, “que é um dos remédios para reordenar o ensino jurídico que se substitua a velha lição de cátedra por um método de ensino mais vivo e moderno, fundado na colaboração contínua dos estudantes com o professor”.(8)

Como se vê, o problema do novo padrão para o ensino jurídico não apenas a questão “o que fazer”, mas também “como fazer”. Portanto, implica o método. E o método, no Direito, reflete uma tendência cada vez mais transdisciplinar, que se verifica pelo avanço da ciência, da sociedade e do próprio Direito, que vai se entrelaçando a outros ramos do saber, no seu desenvolvimento.

Surgem novas exigências sociais, que ensejam que o Direito se debruce sobre outros saberes e assim vão se tecendo a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade jurídicas.(9)

4. BREVE CONCLUSÃO

Neste artigo realizamos uma convenção semântica sobre modelo e padrão. Vimos que o modelo é estanque e acabado, portanto não serve devidamente ao ensino jurídico de boa qualidade.

 Já o padrão, por seu turno, é plural e flexível, mostrando-se capaz de promover a inclusão social e a transdisciplinaridade. Vimos também como ensino jurídico, historicamente, esteve atrelado às questões sociais, privilegiando as elites. Acreditamos que o padrão transdisciplinar possa contribuir para romper esse círculo vicioso, pois ao trabalhar com temas transversais, propicia a interface entre os saberes e, por conseguinte, entre os diferentes níveis da realidade social, pois o saber e o real são fortemente imbricados.

5. REFERÊNCIAS

CARNEIRO, M. F. Pesquisa Jurídica na complexidade e transdisciplinaridade. 2.ª ed., Curitiba: Juruá, 2009.
CRUZ, M. R. Cadernos de psicofonias de 2004 Doutrina social espírita (pelo espírito Antonio Grimm). Curitiba: SBEE, 2005.
FARIA, J. E. A função social da dogmática e a crise do ensino e da cultura brasileira. In: Sociologia Jurídica. Crise do Direito e Próxis Política. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
MELO FILHO, A. Repensando o ensino para o século XXI. In: Revista Cearense Independente do Ministério Público, Ano I, n.º 01, Abril/99, Fortaleza: ABC.
Metodologia do Ensino Jurídico. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984.
OLIVEIRA, José Sebastião de. O perfil do profissional do Direito neste início de século XXI . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 208, 30 jan. 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4745. Acesso em: 07 maio 2010.

Notas:

(1) CRUZ, M. R. Cadernos de psicofonias de 2004 doutrina social espírita [pelo espírito Antonio Grimm). Curitiba: SBEE, 2005, p. 160 e 158-9
(2) FARIA, J. E. A função social da dogmática e a crise do ensino e da cultura brasileira. In: Sociologia Jurídica. Crise do Direito e Práxis Política. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 157.
(3) Idem, Ibidem, p. 161
(4) Idem, Ibidem, p. 168
(5) OLIVEIRA, José Sebastião de. O perfil do profissional do Direito neste início de século XXI . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 208, 30 jan. 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4745. Acesso em: 7 maio 2010.
(6) CRUZ, M. R. Op. cit., p. 105.
(7) MELO FILHO, A. Repensando o ensino para o século XXI. In: Revista Cearense Independente do Ministério Público, Ano I, n.º 01, Abril/99, Fortaleza: ABC, p. 27.
(8) Idem. Metodologia do Ensino Jurídico. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 111
(9) Veja-se CARNEIRO, M. F. Pesquisa jurídica na complexidade e transdisciplinaridade. 2.ª ed., Curitiba: Juruá, 2009.

Maria Francisca Carneiro é Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Doutora em Direito pela UFPR. Membro do Centro de Letras do Paraná. mfrancis@netpar.com.br

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