Ensino jurídico: aproximações entre direito, cinema e literatura clássica

Quem participa do processo de ensino jurídico atua diante de complexidades e paradoxos. O curso de direito traz a marca indelével de reconhecimento social e possibilidade de ascensão na carreira profissional, porém, em razão disto a partir da década de 90 ocorreu uma excessiva expansão dos cursos jurídicos deixando o sistema próximo de um colapso e o impeliu à constante necessidade de re-invenção. Os estudantes se vêem diante de dificuldades como a conciliação entre trabalho e estudo, exame da OAB, monografia, além da pluralidade de cursos e vieses de formação sobre os quais dificilmente podem ter conhecimento integral antes de ingressar na universidade. Já os professores têm a difícil tarefa de lidar com estudantes de características plurais em sua formação, interesses e visões de mundo.

O antigo debate entre a formação humanista e tecnicista resolveu-se numa síntese dialética: precisamos de um bacharel que seja humanista com boa formação técnica. Mas como alcançar esse híbrido? Como explicitar aos alunos de direito que sua trajetória de vida requer uma visão realmente densa dos conflitos sociais e interpessoais, e que isso muitas vezes irá colidir com a sua visão de senso comum da realidade? E mais, como fazê-los traçar esse caminho que normalmente é mais árduo do que a singela formação apegada aos valores técnico-formais?

Diversas estratégias podem levar à consecução de tal objetivo. Primeiro é preciso um grande esforço pedagógico na atuação dos docentes. Precisamos nos reinventar. Muitas vezes os alunos de graduação sofrem em razão da falta de formação pedagógica de seus professores. Não é incomum que grandes advogados, juízes e promotores lecionem em faculdades de direito sem ter a consciência da necessidade de aprimoramento pedagógico, sem saber usar um quadro negro ou mesmo, sem reconhecer a importância da multiplicidade de instrumentos de avaliação, pois foi assim que muitas vezes aprenderam com seus professores.

De outro lado, há docentes preocupados em oferecer alternativas ao ensino fundado única e exclusivamente nas velhas aulas expositivas. Desde já, para evitar equívocos, faço uma ressalva, acredito que as aulas expositivas são necessárias, tal como a leitura de textos jurídicos é absolutamente fundamental no curso de direito, porém, o ensino não deve se restringir a isso.

A realização de pontes entre diversos saberes e instrumentos culturais é apontada por muitos como chave para qualificar a visão dos acadêmicos. O cinema, a televisão, o teatro, as artes, a literatura em prosa e a poesia são produtos culturais de seu tempo e, portanto, instrumentos de interpretação do mundo; são ferramentas que recriam a visão do homem sobre ele mesmo e podem oferecer algo além do senso comum sobre a realidade.

Uma estratégia para tal tarefa é aproximar o direito do cinema e a partir dele elaborar discussões de múltiplas questões sociais que aulas e mais aulas não dariam conta. Para tanto, servem os documentários e filmes de tribunais, já utilizados por diversos professores que lidam com a questão jurídica mais evidente. Porém, outros filmes que tratam de questões sociais podem traduzir visões complexas sobre direitos individuais e coletivos, mostrando um direito não diretamente ligado àquilo que decidem os tribunais, mas que é vivo e está em todas as relações concretas do dia-a-dia. Para tanto, não basta passar o filme em sala de aula. É necessário que os professores e alunos se envolvam nele como um projeto que diga respeito ao conteúdo programático da matéria e que seja precedido de explicação e sucedido de debates sobre as múltiplas interpretações cabíveis.

Preferencialmente, é interessante que sejam projetos desenvolvidos paralelamente às atividades regulares de ensino, a título de complementação. Ainda, quando possível, devem ser trazidos textos críticos sobre a obra e exercícios individuais e coletivos para expressar as questões que ficaram em aberto na discussão. Com isso são atingidos diversos objetivos: densifica-se a interpretação de múltiplas realidades sociais; criam-se instrumentos para os acadêmicos interpretarem esses elementos da indústria cultural de forma autônoma e, mais que isso, desenvolve-se uma percepção de que o mundo midiático à sua volta não deve ser visto apenas como uma forma de entretenimento, ou mesmo como um instrumento de alienação, mas consiste em mecanismos de releitura crítica do mundo.

Outro caminho que pode ser trilhado simultaneamente é a aproximação entre direito e a literatura clássica. Através dela os acadêmicos dialogam com outros campos de saber e realidades polissêmicas. Como menciona Ítalo Calvino ?os clássicos são livros que pensamos conhecer por ouvir dizer, mas quando são lidos de fato se revelam novos, inesperados, inéditos?. Essa capacidade de se apresentar como inédito, de trazer novas luzes sobre o mundo é característica fundamental para aquele que escolheu o direito como missão, como tarefa de vida. Felizmente, há cada vez mais professores envolvidos em leituras interdisciplinares de textos clássicos, incentivando alunos a conhecerem tais obras a partir de visões de distintas matérias como filosofia, sociologia, história e hermenêutica. Um curso que se pretenda contemporâneo não poderá ignorar esta nova face da interdisciplinaridade, que já compõe o núcleo de pesquisas de grandes autores no campo da teoria do Direito, como é o caso de Ronald Dworkin, nos EUA. No Brasil, ainda somos iniciantes neste campo, com poucos professores e linhas de pesquisa dedicados a esta temática.

Ao dialogar com o cinema e a literatura o estudante terá suas certezas quebradas, perceberá que tem algo a aprender com diretores como Glauber Rocha, Bernardo Bertolucci, Roman Polanski, Stanley Kubrick e autores como Euclides da Cunha, Machado de Assis, Dostoiévski, Kafka, Sartre, Shakespeare, Camus ou Thomas Morus. E a partir daí tornar-se-á mais hábil para ler a realidade social, para ser um cidadão completo e escolher o que fazer da sua carreira, evitando ser um simples ?escolhido? pelo mercado.

Ozias Paese Neves é advogado, graduado e mestre em  História, professor de Sociologia do Direito, coordenador adjunto do  curso de Direito da Unibrasil.

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