Ensino do Direito: um caminho para os direitos fundamentais

Se é certo que depois de Marx e Freud não é mais possível aceitar a idéia de uma razão soberana e livre de condicionamentos materiais e psíquicos, bem como, após Adorno, não se pode menosprezar o lado repressivo da razão, também é certo que, por tais signos, não há que se considerar a razão uma remota recordação da modernidade.

Sérgio Paulo Rouanet já lembrou que a verdadeira razão é consciente dos seus limites, percebe o espaço irracional em que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional. Uma das principais armadilhas da pós-modernidade consiste, exatamente, em fazer o indivíduo crer que a racionalidade está morta e, assim, fazer imaginar que a sociedade está submetida a leis irracionais às quais não domina e, por isso, nada pode fazer para modificá-las. Isso se reflete em grande parte das atitudes diárias do cidadão comum. Seja na incapacidade de indignação diante do espetáculo da sociedade de horrores, na routinização da violência, na banalização da violação dos direitos fundamentais por todos (não só pelo Estado) ou na disseminação do sentimento de ?este problema não é meu?, o homem comum vai, aos poucos, sendo conduzido a um alheamento de sua capacidade crítica.

No direito a situação não é diversa. Cada vez mais os operadores jurídicos são conduzidos por um discurso que os levam a crer na impossibilidade de vencer as leis do mercado e as ?razões de ordem econômica?, que os fazem crer que a constituição não tem força para se fazer valer ?diante do sistema posto?, que o Estado será sempre e inevitavelmente refém de PCCs, Comandos Vermelhos e esquemas de corrupção, que o direito que se ensina na teoria é diferente daquele que se faz na prática. Tais crenças também conduzem a um alheamento da capacidade crítica. Os operadores do direito tornam-se incapazes de ?vencer? leis e esquemas predeterminados que fogem ao controle da razão jurídica. Aí se tornam escravos de um ?mundo exterior?, não construído por eles, e que, por isso, não podem modificá-lo.

Assim também ocorria quando os homens pensavam estar submetidos a uma ordem externa de natureza cosmológica ou teológica. Mas se antes os homens acreditavam estar submetidos a determinada ?ordem?, agora tem-se a sensação de estarem submetidos a um quadro invencível de barbárie.

Contra a ordem predefinida pela natureza e Deus, o homem desenvolveu, no quadro do iluminismo e da iluminura, o discurso da razão, que lhe restituiu a autonomia. Todo um processo pedagógico, como já lembrou García de Enterría, levou os indivíduos a crerem no poder de emancipação e libertação das palavras. Daí o sentido revolucionário de significantes como igualdade, liberdade, propriedade e solidariedade, da crença na possibilidade do direito emancipar e transformar, com limitações, a realidade, dentre tantos valores da modernidade que, aos poucos, vão se perdendo.

É preciso, pois, no quadro atual, uma estação de paragem. O momento é para reflexão. O pensamento acadêmico, ao passo que deve se preocupar em descrever o estágio de crueldade a que os homens e a sociedade vão sendo conduzidos, delimitando diagnósticos, há que retomar a capacidade crítica criativa, propondo, através de discursos também normativos (e não apenas analíticos), as linhas para superação da estagnação, permitindo a percepção dos limites de sua atuação e possibilitando a emancipação.

Por vezes, no direito, as amarras a que se deve buscar superação são sutis. Estão bem escondidas nos discursos de ?aplicabilidade das normas constitucionais?, em teorias sofisticadas como a da ?reserva do possível?, no já criticado mito da supremacia do interesse público sobre o privado, sempre utilizados para, mascaradamente, imunizar a realização dos direitos fundamentais individuais ou sociais.

É preciso, pois, vigilância. A tarefa não é simples e nem fácil. Uma pedagogia crítica do direito e dos direitos fundamentais pode ser capaz não isoladamente, por certo – de livrar os operadores do direito de perigosos obstáculos epistemológicos nas suas produções teóricas e capacitar uma prática que não conduza à delirante reprodução de um modelo dado como insuperável. A construção desta pedagogia é um desafio que inelutavelmente se coloca.

Paulo Ricardo Schier é doutor em Direito Constitucional pela UFPR e Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Constitucional da UniBrasil.

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