Ensino do Direito: o desafio de criar um compromisso cívico

Não é curioso que os dois principais protagonistas do episódio do ?escândalo do mensalão? se formaram em Direito? Esta questão, que me fizeram à época da referida crise política, merece mais tempo para ser pensada. A partir de então pode-se perceber que não é raro o envolvimento de profissionais da área jurídica em escândalos de corrupção. Na realidade, o imaginário popular já vem acusando problemas na postura moral dos chamados ?advogados? (nome popularmente atribuído a todos os que fazem uma escola de Direito), sempre ligados à imagem da esperteza marota e a habilidade malandra de obter vantagem em detrimento dos outros. Longe dar razão ao adágio romano ?vox populi, vox Dei?, o intento aqui é tão somente despertar a atenção para a imagem, relativamente negativa, se comparada com as de outras categorias profissionais, que a sociedade construiu ao longo da história. Todavia, nota-se uma curiosa coincidência entre a percepção popular e os recentes escândalos de corrupção envolvendo profissionais da área jurídica.

O que há de atacável nessas práticas? A falta de compromisso com alguma noção de bem-comum. Parece óbvio que o fenômeno do comportamento profissional corrupto não se manifesta somente entre alguns operadores jurídicos, mas também entre grupos de demais categorias profissionais. O que se reputa por grave, no entanto, é o deliberado comportamento desviante de alguns que foram formados para promover Direito pátrio. Do envolvimento com narcotraficantes à participação em escândalos relacionados com dinheiro público, a presença de alguns daqueles a quem foi confiada a operação do sistema jurídico nacional tem provocado preocupação entre os profissionais do Direito. Numa sociedade cuja taxa de participação política é relativamente baixa a efetivação e salvaguarda dos direitos é muito dependente da atuação desses profissionais. A falta de confiança social em determinadas instituições, motivada também por certos desvios de conduta, pode contribuir para geração de um lamentável retrocesso social.

O ensino ministrado nas faculdades de direito pode influenciar o comportamento ético dos profissionais egressos? Certamente, embora não se possa explicar a postura ética exclusivamente pelo ensino. Baseados em dados de 1999, os professores da USP, Maria Tereza Sadek e Humberto Dantas, concluíram, num trabalho publicado no ano de 2000(1), que os deputados formados em Direito compunham o maior grupo de profissionais dentro da Câmara Federal. Persistindo a tendência do século XIX (em 1886, 64,8% dos deputados tinham formação jurídica), em 1999, 27,93% (cerca de 143) dos parlamentares da Câmara dos Deputados era proveniente do mundo jurídico. Esta presença significativa e constante no cenário político nacional, porém, não tem contribuído, pelo menos como se esperava, nem para a moralização do processo decisório nem para elevar sua eficiência. O estudo citado demonstra que dos 31 deputados que formavam a Comissão para a Reforma do Judiciário, em 1999, 28 eram profissionais do Direito (chamados ?técnicos?) e apenas 3 eram oriundos de outras profissões (chamados ?curiosos?), e mesmo assim não lograram criar soluções eficazes para os problemas que afligem o sistema judiciário no Brasil, como o nepotismo, a corrupção e a morosidade. Um dos fatores, elencados por Sadek e Dantas, que contribuem tanto para o mau desempenho quanto para a conduta indesejável de alguns desses profissionais, é que eles são egressos de instituições de baixa qualificação educacional. Segundo a pesquisa, os estados do Nordeste, só para ficar num exemplo, foram os que mais elegeram deputados-bacharéis para a Câmara Federal (cerca de 46). Contudo, quase 85% dos cursos de Direito desta região foram avaliados pelo MEC com conceitos ?C?, ?D? ou ?E?.

A influência do ensino jurídico sobre a conduta dos profissionais do Direito, entretanto, não se restringe somente à qualidade do conteúdo técnico. Aliás, a ênfase no conhecimento técnico, uma clara orientação liberal do ensino do Direito, pode ter dado origem a sérios problemas de formação. A influência liberal torna o conhecimento um instrumento com o qual os indivíduos promovem seus interesses. É muito comum o aluno, recém-chegado na faculdade de direito, alegar que quer fazer o curso para ganhar dinheiro, para construir uma carreia no Estado, ou para outro fim tão específico quanto ?livrar empresa da carga tributária?. A dificuldade de se entender o Direito como um patrimônio coletivo, um bem-comum, parece estar na raiz de boa parte dos problemas de performance indesejável dos operadores jurídicos. Sem um inabalável compromisso com a proteção e promoção do interesse público e do bem-comum dificilmente estes profissionais resistirão à tentação de estabelecer conluios corruptos com seus pares ou com outros profissionais, sempre com o intuito de promover interesses individualistas.

A pretensão deste escrito é despertar para o fato de que a formação de operadores jurídicos comprometidos com um Direito entendido como relação e diálogo social, melhor, como forma de realização de um projeto comum, precisa ir além do ensino puramente técnico. As escolas de direito necessitam empenhar-se na formação de um novo sistema de referências que possam orientar a conduta dos profissionais egressos. Já faz mais de cem anos que o Brasil tornou-se uma República. Contudo, o País ainda se vê embaraçado com o nepotismo e o patrimonialismo, características, segundo Weber, de administrações tradicionais, não-republicanas, monárquicas. Um cientista político norte-americano, prof. Robert Dahl, afirmou que a crença em torno de certas regras viabiliza as mesmas. Isto é o mesmo que dizer que sem uma firme crença nos valores que informam as leis contra a corrupção, os operadores do Direito serão incapazes de aplicá-las, por mais conhecimento técnico que possuam. Por isso o prof. Dahl afirmou certa vez: ?Um sistema viável de democracia exigiria, sem dúvida, extensa doutrinação e habituação social?.

Portanto, o abandono da orientação liberal do ensino jurídico é essencial para a mudança de comportamento profissional dos operadores jurídicos. Os cursos de direito devem tomar para si a responsabilidade de criar formas efetivas de conceber profissionais com algo mais do que conhecimento jurídico técnico. As faculdades devem ser formadoras de valores-referência. As disciplinas, não somente as propedêuticas, deverão ter seus conteúdos organizados tendo em vista um sistema de crenças em valores e princípios, sem os quais o conhecimento técnico servirá apenas como instrumento de execução de interesses egoístas. É bom lembrar que Platão, em A República, já chamava a atenção para o fato de que se os homens não fossem educados para agirem orientados por certos valores, ?iriam passar a vida a fazerem grande número de tais regras e a reformá-las, na suposição de que chegarão à melhor?. Dito e feito, criar uma constituição cidadã não basta para se efetivar a cidadania, pois nem todos os operadores do direito estão culturalmente orientados pelos valores que a carta procura promover.

Formar operadores jurídicos orientados por um novo sistema de crenças harmônico com o espírito da nova Constituição é o desafio do ensino jurídico.

Nota:

(1) SADEK, MARIA TEREZA; DANTAS, HUMBERTO. Os Bacharéis em Direito na reforma do Judiciário: técnicos ou curiosos?. São Paulo Perspec., São Paulo, v. 14, n. 2, 2000.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci?arttext&pid=
S0102-88392000000200013&
lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 22/7/2007.

Valter Fernandes da Cunha Filho é doutor em História pela UFPR, professor da UniBrasil.

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