Ensino do Direito: num mundo sem limite

O período atual, que hoje podemos classificar como um ?após? a modernidade na filosofia, na ciência, nas artes, na literatura, etc…, reserva muitos desafios para os que se propõem a pensar a vida, a sociedade e o direito contemporâneos.

Nesse contexto, o título escolhido, baseado na obra do psicanalista francês Jean-Pierre Lebrun chamada ?Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social? [Ed. Companhia de Freud], procura retratar o que talvez seja um dos maiores desses desafios para aqueles que, diariamente, trabalham com o direito e refletem sobre o seu ensino: a superação da resistência à imposição da autoridade e o excessivo egocentrismo de muitos dos jovens que ingressam na faculdade e possuem muita dificuldade de lidar com o ?não?.

Lebrun explica que esses sintomas são cada vez mais freqüentes e decorrem da perda do que, em psicanálise, se entende por figura do Pai (que não é necessariamente pessoa física, mas antes o lugar do limite, a função da castração que, ao mesmo tempo, institui a ordem psíquica do sujeito e fixa o do desejo).

Como decorrência, há um esvaziamento de autoridade que tem proporcionado o que, segundo outro psicanalista francês, Charles Melman, pode ser diagnosticado como uma nova economia psíquica, isto é, um modo egocêntrico de pensar, viver, trabalhar, se relacionar com a família e com as instituições sociais, assentado na exibição do prazer, que é buscado a qualquer preço.

Na nova economia psíquica, não há mais os referenciais éticos que direcionam as condutas das pessoas e daí surge a grande dificuldade da imposição de normas, seja ela a simples especificação de um critério de avaliação em uma prova até a determinação de uma reprovação por insuficiência no rendimento acadêmico.

Num mundo sem limites, qualquer forma de desprazer (ainda que imediato, temporário e educativo) é rechaçada, pois importa o gozo-espetáculo, o amor midiático e, para alcançá-lo, todos os meios são permitidos, até mesmo o imbróglio, a fraude.

Outros sinais dessa crise se manifestam na proeminente apatia política e ausência de estabelecimento de metas e objetivos de vida por parte dos jovens. Pouquíssimos ainda se indignam com as injustiças sociais e passam grande parte do seu tempo gastando energias em ser aceito pelo seu grupo social.

Na linha de pensamento dos psicanalistas citados, essa apatia aparece relacionada com o crescente número de casos de depressão, mal que no ranking das ?doenças da alma? substituiu a neurose gerada pela excessiva repressão e imposição normativa de outrora e que é em grande medida causado pelo vazio do lugar do desejo, pela falta de desafio e obstáculos a serem superados.

Todo esse quadro é agravado pela ausência de percepção por parte dos afetados acerca da própria responsabilidade pelos fracassos em que incorrem.

Com efeito, Eduardo Gianetti da Fonseca, em seu livro intitulado ?Auto-engano?, mostra como é possível que as pessoas acreditem nas mentiras que elas mesmas contam a partir de um mecanismo interno de autodefesa em que, ante a um erro ou a uma situação desagradável, que cause dor (p. ex, uma nota baixa em prova), o ser humano imediatamente recorre a argumentos que o livre de culpa através do deslocamento da responsabilização para um terceiro ou para um fato do qual, em tese, não poderia evitar.

Se por um lado o auto-engano é saudável quando se manifesta de maneira equilibrada, na medida suficiente para preservação da auto-estima, por outro, quando exacerbado nas pessoas ?sem limites? ele se torna o socorro argumentativo dos irresponsáveis, representando o fim do agir ético e da possibilidade de convivência social harmônica.

Perante essa situação, para não incorrer em arroubos autoritários e nem deixar que o processo educativo se desenvolva a partir da incerta autonomia de alunos ?sem limites?, o ensino do direito, se quiser formar cidadãos conscientes e responsáveis, deve, democraticamente, estabelecer com anterioridade e transparência as regras e objetivos a serem almejados, os quais devem ser cumpridos, independente das razões em contrário, pois assim é possível contribuir para uma sociedade mais solidária, onde cada um possa responder pelos seus atos e respeitar o próximo.

Marco Aurélio Marrafon é mestre e doutorando em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná UFPR. Professor de Teoria do Direito e coordenador de Monografias do curso de Direito da UniBrasil Curitiba. Diretor de pesquisas da Academia Brasileira de Direito Constitucional – Abdconst. Professor de Filosofia do Direito e Constituição nos Cursos de Especialização da UniBrasil e Academia Brasileira de Direito Constitucional – Abdconst. Advogado.

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