Encanto

Olhar atento na tela da televisão. As imagens fartamente coloridas e o som alto ocupam todo o espaço acanhado do cômodo, misto de sala e cozinha. O apartamento minúsculo parece incapaz de conter ao mesmo tempo seu corpo franzino e o aparelho de TV. Atravessam o vidro da pequena janela a luz do poste fronteiro e um fio de luar. Sobre a mesa, os restos do jantar se misturam a papéis, o jornal do dia e quatro livros de capa colorida.

O barulho da rua chega espaçadamente, ora porque a televisão o abafa, ora porque o movimento de automóveis diminui com a noite adiantada. Os olhos continuam mergulhados nas imagens em movimento. A cabeça tenta acompanhar falas e idéias num esforço, intransigente com as solicitações à sua volta.

Ao primeiro sinal do intervalo publicitário, ergue-se da cadeira para iniciar a arrumação, ainda que precária, de seu habitat. Nos minutos em que a propaganda movimenta a tela com a ênfase e a mentira habituais, limpa a mesa, organiza a pilha de papéis de prova e o jornal. Deixa intacta a pilha de livros. E corre para a frente da televisão cujo programa dá sinais de reinício.

Enquanto desfilam as cenas do filme a que assiste, deixa a mente vagar entre as paisagens e as personagens, experimentando a leveza e uma doce sensação de merecimento. Sobre a mesa, as provas corrigidas, as médias feitas, os diários de classe preenchidos representam o início das tão esperadas férias. A entrega desse material na manhã seguinte significará um gesto de redenção, o prêmio pelo trabalho desenvolvido, a justificativa das noites em claro e das preocupações cotidianas.

Sobre ela descem seres alados, carregando uma imensa rede em que se prendem os afazeres docentes, transportados para bem longe pelas asas do desejo de novamente tomar posse de si mesma. Ah, o extraordinário poder da expectativa de dias descompromissados!

O barulho de explosões e as imagens poderosas de labaredas tomam conta da tela. Volta a olhar com atenção. O filme se prolonga em cenas de violência. Aos poucos os olhos deslizam para fora da tela, em busca de imagens de aconchego. A solidão do cômodo esbarra, não em paredes ou móveis, mas no silêncio de outros humanos. Homens e mulheres da tela são planos e desprovidos de alma, como flores de plástico, cuja vida é envolta pela artificialidade de camadas de tinta e pela ausência de perfume.

Em cada canto menos visível do espaço diminuto aguardam, porém, os anseios das pequenas alegrias das férias: o sono estendido pelas horas da manhã, o almoço sem pressa, a caminhada diária, o passeio no shopping, o café sorvido em goles espaçados, a música preferida a tocar muitas vezes no velho aparelho de som quase empoeirado, a leitura transitiva, voltada para dentro e para si, sem extensão aos alunos e sem atividades programadas.

O telefone toca e apaga bruscamente as imagens ansiadas. Um último problema antes das férias, chama a diretora. O menino doente, já recuperado, precisa de avaliação fora de época. ?Amanhã, pode ser?? Está bem, mais um dia… menos um dia… A luz fantasmática da televisão recorda a atividade de há pouco, já sem sentido. Os dedos pressionam o botão do controle e a luz se extingue, cortando a comunicação.

Dirige-se maquinalmente à mesa. Arruma novamente os papéis, limpa lentamente o tampo de fórmica. Parece madeira!, ela relembra a voz do vendedor. Os dedos se aproximam casualmente dos livros. Esbarram e os espalham sobre o móvel. As cores vivas das imagens e o negror dos títulos lembram de relance a tela do computador, embora estejam imóveis. Fora uma boa iniciativa trazer da biblioteca da escola aqueles exemplares. Quem sabe num dia de chuva…. Quem sabe antes de dormir…

Quase sem que perceba, as mãos prendem um dos livros, os dedos movem as folhas e a sala recebe a música e a brisa desse folhear. Passa num clarão a palavra solidão. Que em seguida é recoberta por abraço, que sem intervalo vai sendo substituída por caravana, jardim, suspiro, vingança, lençocriança, azubeijo, flocaleidosamor.

Sob uma tempestade de palavras, a leitora deixa-se banhar. Ao sentar-se, o livro aberto já em movimento, a mente elabora imagens no ar, imaginárias. O cômodo mergulha em luz, ângulos e arestas desaparecem. Em seu lugar, um livro, um texto e sua leitora unem-se, felizes, enquanto durar o encanto.

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