O vice-presidente José Alencar jura que não puxa a orelha dos filhos, nem dos netos. Por isso não pretende puxar a orelha de ninguém no governo que integra. Mas, como faz parte da mesma família, acha-se no direito de dizer o que pensa – não apenas para efeito interno, mas publicamente. E foi o que acabou fazendo, outra vez na cadeira de presidente, enquanto Lula viajava pela Europa no início da semana. Ao receber o senador Paulo Paim, que também interinamente ocupava a presidência do Congresso Nacional, José Alencar foi claro: as taxas de juros são, hoje, um assalto.
Foi mais longe, animado por posição semelhante de seu interlocutor. Declarou que, na sua visão, o que está faltando no governo atual é decisão política (“isso não é decisão para economista”). E justificou assegurando que “nunca houve na história do Brasil maior transferência de renda oriunda do trabalho em benefício do sistema financeiro”. Tão grave é a situação que, a seu ver, está na hora de realizar uma “cruzada” nacional contra as taxas praticadas pelos bancos. “Nós estamos no governo – aduziu – para fazer o Brasil crescer, como falou o presidente Lula. Fazer o Brasil crescer, gerar emprego e distribuir a renda nacional”.
Em Genebra, separado apenas pelo Oceano Atlântico e pelo fuso horário, o presidente Lula falava outra linguagem. Defendia a política econômica comandada pelo ministro Antônio Palocci, argumentando que não se baixam os juros com bravatas.
A situação espelha uma realidade com a qual convive o governo capitaneado por Lula, já uma vez paz e amor. Aos poucos, a paz vai sendo tumultuada por sem-terra, sem-emprego, sem-aumento de salário e quejandos, enquanto o amor fenece nos entrechoques que partem de dentro da própria organização partidária, outrora monolítica na crítica feroz. Enquadrar companheiros está cada vez mais difícil que retouçar adversários, principalmente depois que estes contaram com a ajuda das inconfidências de José Dirceu, o homem forte do Planalto, que admite o pé no breque da economia além do limite desejável.
Aliás, esse debate, aliado ao candente tema da reforma previdenciária, inflama também o meio sindical de onde saiu Lula. O ex-metalúrgico pretende dar conselhos a seus sucessores (“não temos o direito de continuar a fazer o mesmo tipo de sindicalismo que fazíamos há 20 ou 30 anos”), mas o 8.º Congresso Nacional da Central Única dos Trabalhadores -CUT está servindo para espelhar muito bem a implosão de uma organização forjada num tipo de discurso que também estaria fora de uso não fossem as surpresas operadas pelo PT-governo, alhures classificadas pelos companheiros mais radicais como “estelionato eleitoral”.
Na CUT, nem mesmo a candidatura de Luiz Marinho, apoiada por Lula, está contente com o que acontece (“Lula e Palocci diziam que não se podia dar cavalo de pau em transatlântico. Pois bem, agora dá para ir virando o navio numa boa”). Muito pior nas alas mais à esquerda, que não se contentam com uma postura que definem como a de “embelezar a pílula para que os trabalhadores engulam com mais facilidade” os remédios do doutor Palocci e do governo que imaginaram um dia fazer parte. Como se vê, a ala considerada radical por aquela que está no governo já fala linguagem idêntica àquela do ocasional aliado, oriundo das hostes empresariais, o liberal José Alencar. Lula precisa decidir seus próximos passos. Ou verá sua popularidade tragada nesse torvelinho que se agita na proporção em que aumentam os riscos de uma estagnação provocada pelos tentáculos da especulação. Produzir e especular são como água e óleo. Não se misturam.