Para desespero de alguns e surpresa de outros, o perfil até aqui conhecido do novo governo é muito semelhante ao do atual. Contribuiu para isso a ação pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando viu que a eleição ? pelo menos no que dizia respeito à Presidência ? estava perdida. Sua aproximação do adversário vencedor roubou deste a possibilidade de transformar a transição num ato de provocação ou confronto. Cooperação passou a ser a linguagem da moda. Em todos os setores, a ordem é cooperar pelo bem do Brasil e dos brasileiros.
Essa lua-de-mel se estendeu para além da imaginação. De parte a parte brotaram elogios, reconhecimentos, cortesias. O estilo produziu discursos que cunharam um novo estágio para a democracia brasileira, agora já vista como madura, estável e pronta para ser vendida como exemplo ao mundo. Na esteira desse clima de aparente cordialidade, muitos argumentos até aqui sustentados pelo governo em conclusão ? principalmente aqueles do campo econômico e financeiro – passaram a ser assumidos pelos que se preparam para a posse, no dia 1.º. No campo tributário, então, aparentemente nada mudou no script.
Há um porém, entretanto, por detrás dessa aparente mesmice. E ele já se deixa ver aqui e acolá, atendendo à orientação ou deliberação da ala mais à esquerda do PT e de outros partidos, inconformados com a falta de diferença entre os que estão para sair e os que se preparam para entrar. Para marcar essa diferença, e de forma imediata, tais setores elegeram a questão agrária como prioridade, desvinculada ? mas não necessariamente oposta ? à prioridade de combate à fome ditada pelo companheiro Lula, assim que se viu eleito.
Essa prioridade paralela é confirmada por João Pedro Stédile, líder máximo do Movimento dos Sem-Terra ? MST, que se faz arauto da promessa de Lula na meta de realização de 80 mil assentamentos durante o ano de 2003, enquanto garante que, mesmo assim, as ocupações vão “continuar durante muitos anos”, até a solução final da “contradição” do latifúndio. Um tom inesperadamente revisionista nasce do Fórum Nacional da Reforma Agrária, que decidiu, segundo anuncia Stédile, criar um tribunal internacional (sob a presidência do vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo) para rever o caso do massacre de Eldorado dos Carajás…
Mas o embate maior está sendo preparado no Congresso, onde alguns parlamentares, como a catarinense Luci Choinachi, entendem que tudo deve ser começado do zero, pois o presidente FHC, em matéria de reforma agrária, “não fez nada além de falsa propaganda”. Assim, um “pacote agrário” articulado pelo núcleo que tem nela um dos articuladores, entre outras muitas coisas e inovações, prega a extinção do Banco da Terra ? uma “invenção do Banco Mundial para acabar com as tradições de lutas camponesas”. As propostas até aqui conhecidas já ouriçaram o pessoal da bancada ruralista no Congresso. Ronaldo Caiado, por exemplo, adverte: “Se o que eles propõem for aprovado, vamos voltar ao processo de convulsão, de inquietação, deixando de lado o que mais desejamos, que é uma reforma sem violência e sem lutas de classes”. Ainda em tom de advertência, seria bom que os que buscam a diferença a qualquer preço refletissem sobre o tom da campanha que deu a vitória a Lula: paz e amor ? eis a diferença que interessa! – em vez da guerra ou do confronto.