O advogado Eduardo Rocha Virmond recebeu no dia 11 de dezembro passado, a Medalha Vieira Neto, honraria máxima concedida pela OAB Paraná aos profissionais que tenham prestado relevantes serviços à Justiça, ao Direito e à classe dos advogados. A homenagem foi prestada em sessão solene do Conselho Seccional, no saguão do auditório da OAB.
Para o vice-presidente da OAB Paraná, Renato Kanayama, dificilmente se repetirá na história uma afinidade tão grande entre um advogado e a Ordem dos Advogados do Brasil. “Uma biografia incomum por transcender a própria e confundir-se com a da Ordem”, disse Kanayama, que fez a saudação ao homenageado.
Num discurso bem-humorado, Virmond lembrou diversos fatos de sua carreira, desde a mocidade, a passagem pela imprensa, a Faculdade de Direito e o trabalho no escritório de Vieira Neto, nome da medalha entregue pela OAB. A luta contra a ditadura militar e pela redemocratização do país tiveram espaço marcante na vida do advogado. Admirador de todas as artes, Virmond falou de poesia e do papel que a cultura tem na sua vida. “É melhor estar enriquecido com a vida exuberante que nos é oferecida pela natureza, pelo convívio com os vivos e com os nossos mortos que povoam a nossa bela lembrança”, disse Virmond. “Vamos em frente, vamos continuar a faina, a luta, para que transformemos o trabalho e o amor em prazer de todo dia. Ao presidente e aos advogados e a todos, os agradecimentos e os cumprimentos deste remanescente do mundo dos vivos”.
O presidente da OAB Paraná, Alberto de Paula Machado, encerrou a solenidade lembrando o discurso de Virmond durante a 7.ª Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Curitiba em 1978. “Nenhum fato histórico ocorre sem a ação de muitas pessoas”, disse. “O destemor de pessoas como o Dr. Virmond foi decisivo para que alcançássemos este momento de plenitude democrática, em que qualquer um pode expressar suas opiniões”.
História
Eduardo Rocha Virmond foi presidente da OAB Paraná de 1977 a 1979, período em que o país vivia sob o controle da ditadura militar. Enquanto esteve na presidência da Seccional, Virmond coordenou a VII Conferência Nacional da OAB (1978), que teve como tema central o Estado de Direito. Com o Teatro Guaíra lotado por 3 mil pessoas, Virmond leu o seu discurso de abertura, seguido pelo presidente nacional da OAB, Raimundo Faoro. O evento tornou-se um marco da resistência contra o regime militar e deu início à mobilização nacional que culminou com anistia e, mais tarde, com o restabelecimento das eleições diretas no país. Foi presidente do Instituto dos Advogados do Paraná e secretário de estado da Cultura e da Justiça.
Direito e Justiça cumprimenta o advogado Eduardo Rocha Virmond que completou 81 anos na última quarta-feira, dia 13 e publica a íntegra de seu discurso “Trem das Onze” no site: www.parana-online.com.br.
Trem das onze
Eduardo Rocha Virmond
Foi para mim uma surpresa receber deste notável Presidente que é Alberto de Paula Machado a indicação para a Medalha José Rodrigues Vieira Netto, com aclamação da proposta pelo Conselho Pleno da Ordem. O vice, o muito especial Renato Kanayama, havia me sondado, assim como o José Lucio Glomb, e ainda a Edni (Virmond) Arruda, que se apressou em dizer que qualquer coisa que fosse proposta em meu favor teria a adesão unânime das mulheres do Conselho Pleno. É uma distinção muito grande essa unani-midade. Vinicius de Moraes falou que as mulheres são muito estranhas e também me surpreendeu que os homens do Conselho, que não devem ser es-tranhos, também tivessem essa grande generosidade.
Eu fui Presidente desta Casa em um de seus momentos mais dramáticos, mas havia me ligado a Ordem desde a eleição de Adolpho de Oliveira Franco em 1953. Fui para o Conselho em 1962, por proposta do saudoso Athos Moraes de Castro Vellozo e daí nunca mais saí.
Por que ficamos ligados à vida pública do País? A guerra de 39/45 mexeu com a nossa geração de maneira bastante ,profunda. Além dos comícios pela participação do Brasil, realizados 1942 em todo o País, que eu assistia com apenas doze anos, lembro que quando houve em 8 de maio de 1945 a rendição incondicional da Alemanha, tivemos uma sensação de alívio de um peso em nossas costas.
A injustiça de agora é de se imaginar que nada isso nos atingia. Durante todo o tempo, tínhamos pavor de que Hitler ganhasse a guerra. Acompanhá-vamos o noticiário de todas as formas. Quando ouvimos que o exército alemão, comandado pelo general Von Paulus, já ocupava noventa e cinco por cento de Stalingrado, ficamos com a sensação de derrota. Daí Stalin gritou de Moscou que a Rússia não recuaria nenhum palmo a mais e começou a ganhar a batalha, que terminou pela rendição dos alemães e com a pri-são de mais de cem mil soldados, inclusive do General. Houve toda essa redenção, até vitória final.
Eu assisti, com dezesseis anos, no Rio de Janeiro, durante um dia intei-ro, o desembarque da Força Expedicionária Brasileira. Fui correndo ao lado dos soldados, desde o Cais do Porto até a Cinelândia, com aquela exaltação por esse fantástico acontecimento. Fomos muito marcados por isso tudo de maneira definitiva.Tenho a impressão que a guerra foi vital para a formação de minha geração. Este foi o estopim para o interesse na vida do Brasil.
Em Curitiba já passei a participar do célebre grupo de intelectuais que se reunia no Café Belas Artes, em 1946. Mais tarde, também comecei a freqüentar o outro grupo, mais velho que nós, participando de reuniões e jantares, a chamado do Temístocles Linhares, do Wilson Martins e de Bra-sil Pinheiro Machado. Nos jantares, muitas vezes realizado no Vagão do Armistício, do inspirado pai do Poty e do Joãozinho Lazarotto, também estavam Bento Munhoz da Rocha Netto, Flávio Suplicy de Lacerda, José Loureiro Fernandes, Homero Braga e alguns outros. Eu era o mais moço de todos e me admirava de porque eles me aturavam.
Fui contratado pela Gazeta do Povo, pelo Alfredo Pinheiro Júnior, que me disse “você está fazendo crítica de graça e eu não gosto disso. Você vai escrever cinco artigos por semana de crítica sobre teatro, literatura, música e pintura”. Eu já sabia bastante e tive me aperfeiçoar para cor-responder a estas difíceis tarefas.
Daí para a advocacia foi um passo. Fui estudar direito influenciado pelo Samuel Guimarães da Costa, do grupo do Café Belas Artes. Ele disse que aquele que não tem vocação para coisa alguma, como era o meu caso, vai estudar Direito.
Continuei no jornalismo no “Diário do Paraná”, em sua fundação em 1955, contratado pelo Aderbal Stresser, onde tive exuberante experiência, mas a renda era mínima. O Vieira Netto conspirou com a Lélia para eu voltar para o escritório tempo integral. Ele disse que eu deveria deixar o es-critório para outro e ela me declarou que se eu fosse jornalista exclu-sivo não poderia casar comigo. Ele combinaram certo e eu voltei para a advocacia. E casei. O jornalismo passou a ser semanal, o que não impli-cava em qualquer prejuízo para a profissão de advogado.
Já conhecia o Vieira Netto, o meu colega Izaurino Gomes Patriota já tra-balhava com ele. O Vieira me disse que quando eu estivesse no quarto ano seria convocado a trabalhar em seu escritório, o que começou a se reali-zar em 11 de janeiro de 1951. Na divisão de trabalho, o Izaurino ficou com a primeira instância e eu com o Tribunal de Justiça, como tarefas permanentes. Havia muitos casos, todos sem muito rendimento, inclusive os sem nenhuma renda possível, como os dos trabalhadores do Porto de Antonina, nossos pobres clientes. Mas eu ia sempre de trem até Antonina para as audiências. O trem era bom, que me permitia a leitura dos livros de literatura, história ou filosofia por várias horas em cada viagem.
Nunca lia livros de direito, que eu considerava chatíssimos. O direito aprendíamos na prática, procurando doutrina e jurisprudência nos casos que o Vieira Netto defendia. Eu achava mais fascinante a literatura e a história. Acredito que a leitura de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, de “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire, dos livros de Machado de Assis, dos franceses Stendhal, André Gide e de Marcel Proust, de Graci,-liano Ramos, de todos os russos e outros para mim foram mais importan-tes. Não esquecer nunca de Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira, ainda de Mário Quintana.
Depois com o Wilson Martins peguei as edições de Ruy Barbosa e vi como a advocacia dos outros podia ser extremamente fascinantes, tão simples, objetiva e direta como do meu mestre Vieira Netto, que eu considerava único.
Interessei-me pelos princípios gerais de direito, com Pontes de Miranda, Teixeira de Freitas, o antipático sábio Francisco Campos, Hélio Torna-ghi, Clovis Bevilacqua, até hoje considero o que há de mais importante para um advogado aprender. O Vieira insistia muito disso.
Em 1956 foi trabalhar conosco o George Bueno Gomm, grande companheiro, que tem a faculdade de ser detalhista e saber de cor muitos artigos de lei, do que nunca fui capaz.
Houve um caso grave de uma ação rescisória que o Vieira propôs. Era pre-ciso haver o despacho do relator suspendendo a prescrição. O Vieira saiu de férias e eu fiquei sozinho. Eu me dei conta que o Relator Desembarga-dor Costa Barros havia determinado a citação, mas não se apercebera da necessidade do despacho de suspensão da prescrição, então obrigatório. A Justiça ia entrar no recesso de julho e fui falar com o Presidente do Tribunal, o Desembargador José Munhoz de Mello. Ele mandou buscar os autos e leu na minha frente a inicial e o despacho.
Terminado isso, ele me disse assim: “Você está no quinto ano e vou te dar uma lição para toda a sua vida. Saiba que um advogado tem de traba-lhar em seu texto na hipótese de que o juiz não raciocina. Você tem que fazer como se raciocinasse por eles. Vá para o escritório, faça uma pe-tição fundamentada e volte correndo ao Tribunal”.
O Munhoz de Mello foi o maior presidente do Tribunal que eu conheci. Paralelos a ele somente Isaias Bevilacqua e Manoel Lacerda Pinto. Muito mais tarde, ele foi Secretário de Estado de Segurança. Recebi um envelo-pe lacrado, entregue por um policial. O Munhoz de Mello enviou-me a mi-nha ficha policial do DOPS, que mandou arrancar dos arquivos da polícia. Isto é que chama boa amizade. Fiquei até transtornado com essa bondade.
A ficha no entanto já havia sido copiada na Terceira Seção do Exército. Bem mais tarde, o Munhoz de Mello foi diretor da Faculdade de Direito. Então oficiou ao Reitor Theodócio Atherino fazendo a indicação de meu nome para professor. Quando cheguei à Reitoria, o Atherino disse que havia só uma formalidade, que eu teria de ir ao andar superior para fa-lar com um senhor Ribeiro. Fui até lá e ele estava com a ficha policial em mãos. Ele era do SNI, que controlava a Universidade inteirinha. Ele disse que eu teria de me retratar do que havia feito e mostrar arrepen-dimento. Que vários professores já haviam assinado a retratação. Não vou contar quais são. Eu disse que eu não me arrependia de nada e reiterava tudo o que havia feito, e que a Universidade que fosse às favas.
Fui à Faculdade de Direito e contei a cena para o Munhoz de Mello. Ele disse que lamentava a absurda exigência, mas que eu havia me desvenci-lhado da retratação com muita razão.
Trabalhei com o Vieira Netto por mais de quinze anos. Não era só traba-lho. Era uma convivência em tudo, na literatura, na filosofia, íamos pela noite adentro, pelos fins de semana, tomamos alguns pileques. Certa vez levei o Vieira, o Izaurino, o Orlando Carbonar, a Lídia Warnecke, a Ninon, que depois casou com o meu grande amigo Nireu Teixeira, para ou-vir a Paixão Segundo São Mateus de Bach, cujos quatro discos meu pai tinha comprado. Distribui Bíblias com o novo testamento, para que pudés-semos ler os recitativos. E assim foi feito, passamos das sete da noite até a meia noite, com a interrupção dos bolinhos de polvilho e de fubá, com café, que minha mãe havia preparado. Dávamos paradas na audição para discutir o texto de São Mateus com a música de Bach. Foi uma experiência inesquecível, feita com amor e sensibilidade. O Vieira participou com intensidade desta discussão. Todos ficamos fascinados pela música de Bach, até o dia de hoje, e aquela noite não foge da lembrança de nenhum de nós.
Vieira Netto foi o maior advogado que eu conheci. No Brasil, havia o Dario de Almeida Magalhães. Havia outros, ,mas ninguém maior que esses dois. Talvez igual em Porto Alegre o notável Julio Teixeira. A turma do Vieira Netto da Faculdade de Direito, que se reunia em nosso escritório, era de 1932 e teve invejável formação jurídica. Havia ali Oscar Virmond Arruda, Antonio Franco Ferreira da Costa, Athos Moraes de Castro Vello-zo, Carlos Filizola, Paulo Medeiros, Francisco de Paula Xavier, José Pacheco Junior, Walfrido Piloto e outras personalidades. O convívio com todos eles era muito estimulante.
O Edgard Luiz Cavalcanti de Albuquerque disse que eu deveria contar al-guns episódios, que se eu não fizesse isso ninguém iria saber. O mesmo disse o Renato Kanayama, cujo pai Kyossi Kanayama, grande advogado, era meu amigo, e depois o nosso Presidente Alberto de Paula Machado concor-dou com essa ideia.
Vamos portanto direto ao Movimento de 64. Foram presos alguns advogados e era preciso que soubessem que a Ordem estava empenhada em suas defe-sas, bem como de todos os presos políticos, muitos deles sem a menor razão. O então Presidente da Ordem Athos Moraes de Castro Vellozo quis falar com o Comandante da Região, o célebre General Aragão, um tipo in-tolerante e intolerável. Ele teria de ir sozinho, a audiência era só com o Athos. Ficamos na esquina da Barão do Cerro Azul com a Carlos Caval-canti: Albarino Mattos Guedes, Edgard Cavalcanti de Albuquerque pai e eu. Estava um terrível frio. Tínhamos receio que, enfrentando aquele tarado que era o General Aragão, o Athos fosse preso, por isso estávamos de tocaia. O Athos prolongou a conversa até sete da noite, quando alivi-ados, mas gelados, vimos ele sair do prédio do Comando da Região.
Depois de um discurso que fiz no Tribunal, o Aragão quis me prender. Jaime Canet, Governador, que estava presente e que não queria encrenca, disse que ele já havia perdido a oportunidade, que deveria ter sido du-rante o discurso, imaginem! O Canet lhe disse que, se eu fosse preso, iria para a primeira página do jornal “O Estado de São Paulo”, que o General considerava comunista, que eu iria me juntar aos poemas de Ca-mões, ameaça que foi suficiente para o Aragão desistir da prisão. Ele não perdeu a oportunidade de se exibir e quando René Dotti fez um dis-curso em solenidade do Tribunal de Alçada, o Aragão o interpelou, que teve cortante resposta do René e o Presidente Desembargador Jorge Andri-gheto liquidou com a ameaça de discussão. Mais tarde, quando discursei na posse do Marino Braga na Presidência do Tribunal, um outro General se retirou, para minha glória, em meio de meu discurso e aí sim fui para a primeira página do “O Estado de São Paulo”.
Vieira Netto, que era perseguido, foi em 64 se refugiar na casa de um de nossos amigos aqui em Curitiba. Ninguém sabia, só três ou quatro. Não conto quem era, por que poderei algum dia precisar me refugiar e ali será o melhor lugar. O miserável Reitor da Universidade, que substituiu o Flávio que foi para o Ministério da Educação, havia dito que aprovei-taria a oportunidade para demitir o Vieira por abandono do cargo de pro-fessor catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito. Pedi audi-ência e ele me recebeu dizendo que todos estávamos sub judice. Eu disse que eu não estava sub judice, talvez ele. Sai do Gabinete, por acaso estava lá fora o Bento Munhoz da Rocha Netto, que me perguntou o que eu estava fazendo ali. Em seguida ele, sem ser anunciado, abriu a porta e esculachou o Reitor, acabando com essa canalhice. Pelo que me lembro, o Egas Dirceu Moniz de Aragão, que é meu colega de turma e meu amigo desde 1948, estava presente.
Fui falar com o Walfrido Piloto e propus a ele para relaxar a vigilância para que o Vieira Netto fosse dar uma aula na Faculdade e frustrasse a ameaça. O Walfrido disse assim: “Eu gosto muito de você, que é da cultu-ra, um intelectual como nós, mas gosto mais do Vieira Netto, que é meu colega de turma da Faculdade. Mas eu sou polícia. Se eu souber onde ele se encontra eu vou prendê-lo. E mais: vou mandar um tira atrás de você”. O Vieira achou a resposta do Walfrido correta e considerou tola e ingê-nua a minha proposta. Eu disse ao Vieira que vários presos já estavam soltos e tinham sido bem tratados e que o Walfrido assegurou que o Viei-ra seria preso com todas as honras, no Comando da Polícia Militar. O Vieira não aceitou e pediu para ir embora para São Paulo, sob a proteção garantida do pessoal da Plumbum ,- enorme e importante empresa da época, de que éramos advogados, cujos chefes tinham a maior admiração pelo Vi-eira.
Planejei a fuga e comuniquei a Cecília, sua filha. Descobri que no sába-do a vigilância policial diminuía. A polícia ia comer feijoada e beber cachaça. Era o momento de sair. E assim foi feito. Eu fiquei com a minha mãe, por quem o Vieira nutria grande admiração, andando pela BR-116, como se estivéssemos passeando. O Edgard Cavalcanti e o médico Fernando Ribeiro e mais dois ou três ficaram em pontos estratégicos. Tínhamos receio de que a polícia interceptasse o cortejo. Fomos até Quatro Bar-ras, onde em uma clareira da estrada o Vieira saiu do Volkswagen do ar-quiteto José Maria Gandolfi e entrou no carro de seu irmão Rui Rodrigues Vieira. Mas era preciso que ele tivesse um documento. Entrementes, fomos à sede da Ordem e pegamos uma carteira em branco. Colocamos o retrato dele e o nome do Oscar Virmond Arruda, que estava também presente e con-sentiu. O Edgard Cavalcanti, que era o Presidente, assinou a Carteira.
Gente extraordinariamente corajosa e solidária até além da conta, arris-cando tudo. Por fim, ele foi embora e saiu-se muito bem em São Paulo, até quando Elio Narezi e René Dotti, que passaram a ser seus advogados, pediram para ele voltar quando tudo estava mais tranqüilo. E Walfrido cumpriu a sua palavra de que ele seria tratado da melhor forma possível.
Bem mais tarde, como Presidente da Academia Paranaense de Letras, Wal-frido Piloto foi, junto com o Samuel Guimarães da Costa, me convidar para a Academia. Eu pedi que me dessem a cadeira do extraordinário inte-lectual Andrade Muricy, com quem eu tinha afinidades na crítica de arte, literatura e de música. Entrei em 1994 e fui saudado pela notável e ma-ravilhosa Helena Kolody, em um texto muito lisonjeiro. E muito poético, como não podia deixar de ser. Eu fui o único acadêmico saudado por essa incrível poetisa.
Entre 64 e 65 houve em São Paulo um forte esquema de caça às bruxas. Muitos intelectuais e professores precisavam fugir do País, o que era difícil pelos meios normais. O Maurício Segall, filho do célebre pintor, foi informado pelos meus amigos pintores Arcângelo Ianelli e Tomie Ohta-ke, de minhas posições. Maurício já tinha sabido de que eu seria confiá-vel para operações arriscadas. Começou então a minha atividade como pom-bo correio. Maurício tinha uma empresa de transporte de automóveis e servia-se dela para comunicação comigo. Parava às vezes um enorme cami-nhão-cegonha em frente de minha casa e descia um portador com uma carta. Logo em seguida chegava aquele que eu deveria colocar para fora do País. Concordamos que voltar a São Paulo era impossível e para o Rio arrisca-do. Fiz a experiência mandando gente para o Paraguai, havia um avião direto de Curitiba a Assunção. Podia descer por minutos em Foz do Igua-çu, mas nunca houve problemas. Muitas dessas vítimas da ditadura eu con-segui embarcar, quatro, seis, nove.
O maior problema foi criado pelo professor Mack, cientista e médico, que era detestado pelas autoridades da Universidade de São Paulo e pela po-lícia. Ele chegou a Curitiba com a mulher, uma filha pequena e com onze malas, para ir para os Estados Unidos, à convite de uma célebre Univer-sidade americana. O Mack era alemão, teve de voltar a São Paulo para conseguir o seu passaporte no Consulado da Alemanha. O consul, um bom nazista, disse que quando ele saísse do Consulado comunicaria à polícia. Mack voltou com o passaporte, enquanto isso eu e Lélia dávamos apoio a sua mulher e sua pequena filha. Eu os hospedei no estabelecimento do Mário Giovanoni, amigo de meu pai de Ponta Grossa, e tinha criado algo entre pensão e hotel. Lá eu hospedei grande parte dos fugitivos. Mário fingia que não sabia de nada. Aí chegou o Natal e o Ano Novo. Como jus-tificar que aqueles três passassem essa época sós em um pequeno Hotel? Levei lá o Alcidino Bittencourt Pereira, o Antonio Alves do Prado Filho, o George Bueno Gomm, minha mulher e a Dalena Guimarães Alves. Era deses-perante. A mulher dele precisava do visto de saída, dado pela DOPS e ele o visto da Polícia Federal. Enfim chegou o dia do bota fora, depois de todo esse sofrimento. Fomos ao aeroporto e ficaram os mencionados amigos em pontos estratégicos. Eu desci ,de meu carro com o Mack, sua mulher e sua filha, em outra caminhonete vinham as onze malas. Foi uma tensão dos diabos. Eles embarcaram e foi aquele alívio.
Eu comuniquei que por avião não seria mais possível mandar os fugitivos. Maurício Segal concordou em mandar por ônibus e assim fizemos. Lembro que havia um manjado paranaense, não estou autorizado a dizer o nome, que não podia pegar o ônibus em Curitiba. Compramos a sua passagem para o Rio Grande do Sul e ele foi pegar o ônibus em Rio Negro. O Prado le-vou-o até lá em seu carro. As coisas eram assim e afinal Maurício Segal julgou esgotada a minha missão, que estava se tornando visivel e suspei-ta. Mas eu fiquei muito satisfeito com tudo isso e nunca fomos interpe-lados. Minha mulher agüentou firme todas essas manobras.
Quando o Vieira Netto terminou os seus cinqüenta dias de prisão, voltou ao escritório. Nessa época toda já havia um desentendimento comigo. Ele disse que não tolerava que eu me metesse na vida íntima e particular dele. E fizemos um outro escritório. O Izaurino já havia saído dois anos antes. O George Bueno Gomm resolveu nos acompanhar. A Denise Arruda, filha do Doutor Oscar Virmond Arruda, foi instada a ficar mais um pouco, mas também acabou saindo e foi prestar concurso para a Magistratura. Daí ela ser, com muitos e louváveis méritos, Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Depois, o Vieira Netto fez as pazes comigo e foi me visitar no meu es-critório, junto com Antonio Alves do Prado Filho. Quando fui eleito Pre-sidente do Instituto, o Vieira fez um discurso, congratulando-se comigo, e tornando pública a nossa reconciliação. Eu não esperava e fiquei muito comovido com o discurso do Vieira.
Entre abril e maio de 64 foi instalada a Comissão Geral de Investigações dentro da Universidade do Paraná. Eram um Major do Exército e mais os professores Laertes Munhoz e Nelson Luz. Sabia-se que eles estavam se reunindo e não havia processo. Resolvi apresentar uma longa defesa cabal do Vieira Netto, mostrando o seu invejável comportamento como cidadão responsável, professor admirado por todos os alunos, profundo conhecedor do direito.
Mostrei a defesa para o Doutor Oscar Virmond Arruda, um senhor advogado, amigo do Vieira, que a aprovou. Fui à Faculdade para entregá-la para o professor Laertes Munhoz, com quem eu tinha boa camaradagem. Ele se re-cusou a receber a defesa. Quem assistiu essa cena da recusa foi o René Dotti, que ficou indignado. Na Reitoria, o professor Nelson Luz disse que já tinha opinião formada e que não leria defesa nenhuma. Como ele era um radical da extrema direita, não havia entendimento possível. Fal-tava o militar, o homem da Revolução. O major, no entanto, ao contrário dos professores, me recebeu com a maior delicadeza e assegurou-me seu interesse em ler a defesa com muita atenção. Curioso, não?
Mas o Vieira não foi punido, nem o Amílcar Gigante, nem outros, através da Universidade. Ele entrou numa lista cumprida de cassados, daquelas que a polícia política fazia, principalmente a do Exército. O Ney Braga mandou me avisar que ele não tinha nada com isso. O Flávio Suplicy de Lacerda pediu ao Jucundino Furtado que me contasse ter ficado muito a-borrecido e constrangido. Ele já era Ministro da Educação.
Antes disso, eu era professor de História da Arte, mas fui indicado pelo Vieira Netto, junto com o Lamartine Correia de Oliveira, como assistente de Direito Civil. O Conselho aceitou o Lamartine e arquivou a indicação de meu nome. O Flávio era Reitor e me chamou. Disse que ele iria arrumar a minha investidura como professor de História da Arte, que eu já exer-cia há três anos. Aconselhou-me a desistir da Faculdade de Direito. “E-les não te querem lá, você é melhor que eles. Caia fora e venha para a História da Arte”. Coisas do Flávio, que não gostava da Faculdade de Direito. Não deu tempo. O novo Reitor me colocou para fora da Universi-dade e o Flávio me disse que era mais uma canalhice de quem não podia se esperar outra coisa.
Eu sempre me diverti muito com o Flávio, assim como com o Antonio Franco Ferreira da Costa. O Antonio era muito ligado. A mulher dele era minha prima da família Macedo. O Antonio me chamava sempre para o que lhe des-se na telha, como por exemplo defender a sua mulher Maria em freqüentes batidas de trânsito, que lhe causav,am grandes gargalhadas, ou para cola-borar em algum despacho de juiz de primeira instância. Ele queria a vi-são de um advogado, a confiança em mim era absoluta. Toda vez era atra-vés do Edmundo Mercer Junior. As companhias de ambos eram muito agradá-veis. Havia na classe quem os detestasse, eu nunca. Ambos foram notáveis presidentes do Tribunal de Justiça.
Na Ordem dos Advogados, a nossa primeira tarefa como Presidente era a de escolher o Presidente do Conselho Federal. Como o Josaphat Marinho não aceitou o convite em Salvador, acabamos gostando mais do Raymundo Faoro, que era além de jurista um notável historiador. A afinidade comigo era total. A campanha foi difícil porque o Josaphat voltou atrás e atendeu à instâncias da delegação do Rio de Janeiro, do Ribeiro de Castro, do Dou-tor Sobral Pinto. Não participamos da indicação do Faoro, mas o Sérgio Bermudes, o Cavalcanti Neves, eu e o Doutor Raymundo Cândido, Presidente em Minas da OAB, fizemos a campanha no Brasil inteiro em favor do Faoro, junto com a turma do Rio Grande do Sul. Diziam que ele era reacionário, um espião dentro da Ordem, e nós retrucamos que o chefe do Partido Comu-nista no Rio Grande, o espetacular advogado que era o Julio Teixeira, participava da convicção de que o Faoro iria salvar a Ordem. Ganhamos a eleição por um voto de diferença.
E o Faoro foi esse grande presidente que todos admiramos, que ficará na história. Organizamos juntos a VII Conferência Nacional da Ordem, em Curitiba. Na Comissão de Organização estava entre outros o notável Mi-nistro Victor Nunes Leal, que fora cassado. A experiência do Victor vi-nha de longe, inclusive a de ter sido Chefe da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitchek. É bom comparar com o Chefe de agora, para verifi-car-se até que ponto caímos.
Entre os que foram visitar o Victor à noite da cassação, em solidarieda-de estava o notável Cláudio Penna Lacombe, meu amigo íntimo, um irmão, que tinha, desde 1960, o mais expressivo escritório de advocacia de Bra-sília. O Victor disse ao Lacombe: “Tem um lugar para mim em seu escritó-rio?”. No dia seguinte, às oito da manhã, Victor começou a trabalhar como advogado e em seguida fez a sociedade com o Cláudio Lacombe, José Paulo Sepúlveda Pertence, Pedro Gordilho e José Guilherme Vilella, soci-edade que serviu de modelo para todas as melhores sociedades de advoga-dos do Brasil. Pedro Gordilho até hoje é minha base em Brasília. Temos afinidades em todos os campos culturais, principalmente na música clás-sica, uma de minhas especialidades.
No início do ano de 78 foram presos onze pessoas que se dizia que esta-riam ensinado marxismo para crianças do jardim de infância. Foi ampla-mente divulgado. Queríamos que fosse facultado aos presos que a sua in-comunicabilidade não se estendesse aos advogados. Veio aqui uma repre-sentante do Anistia Internacional, moça bonita e de grande sabedoria. Pouco adiantou, mas chamou a atenção para a ridicularia da prisão. As notícias saíram na BBC de Londres e na CBS de Nova York. Faoro estava em comunicação com o Portela. A autorização para o pronto encontro do advo-gado com o preso em andamento. Criaria um precedente importantíssimo, pois evitaria que nos quinze dias da incomunicabilidade o preso fosse torturado e desaparecessem os sinais.
Estava tudo muito bem e em uma manhã, sete horas, recebi o telefonema do Faoro dizendo que havia ocorrido qualquer coisa no Paraná e o Portela tinha encerrado as negociações. Aconteceu que o Leite Chaves invadiu com mais um grupo a Polícia Federal, fazendo uma onda e criando esse obstá-culo definitivo, pois o Governo não iria dar de bandeja para o MDB a reivindicação da Ordem. O Portela para o Faoro: “Avise o Virmond para tomar a iniciativa que puder inventar”. Lembrei-me de um precedente do Vieira Netto, que aprendi com ele, e prontamente ingressei com um habeas corpus por telegrama para o Superior Tribunal Militar.
Avisei o Faoro, que falou com o Portela. No prazo das informações ele mandou soltar os acusados. Estava salvo o Governo e a Ordem. Conversei outra vez com o Euclides Scalco, excelente pessoa e político decente, que antes dissera, em solidariedade, junto com o José Richa, que deverí-amos trabalhar juntos, porque qualquer iniciativa do MDB seria mal vis-ta, poderia prejudicar. E ele me respondeu, o Euclides Scalc,o, que o Leite Chaves era incontrolável, que ele queria sair no jornal e conse-guiu.
Quando houve a VII Conferência, fiz o discurso chave das seis da tarde. Era domingo e o Teatro Guayra foi ocupado por três mil pessoas. Uma sen-sação. Durante o meu discurso houve várias interrupções com palmas. Quando acabei todos ficaram de pé, me ovacionando por mais de dez minu-tos. Eu não sabia o que fazer, mas assisti que os maiores juristas e advogados do Brasil estavam ali batendo palmas para mim, em pé, entre os quais Pontes de Miranda, Seabra Fagundes, Victor Nunes Leal, Caio Mario da Silva Pereira, Evandro Lins, José Paulo Pertence, Samuel McDowell Figueiredo, Rafael de Almeida Magalhães, Gofredo da Silva Telles, a nos-sa turma do Paraná e tantos outros. É fácil imaginar minha emoção, pe-queno advogado de província, vendo aquele espetáculo.
Por muitos dias seguintes, mais de uma vez em que eu entrava em lugar público, como em um restaurante, havia alguém que fazia com que o povo batesse palmas, um fenômeno impressionante. Como todos sabiam dessa his-tória? Diria Ibrahim Sued, tudo se sabe em sociedade.
Bem mais tarde fui convidado pelo Jaime Lerner para Secretário de Estado da Cultura. Foi uma experiência boa, fiz bons amigos, mas eu não preci-sava dessas experiências, ainda mais administrativas. Logo no começo recebi a visita do Guilherme de Albuquerque Maranhão, personalidade mui-to forte, notável promotor e depois desembargador, desejando-me felici-dades no cargo. Terminou dizendo: “Saiba que qualquer idiota pode ser Secretário de Estado. Nós do Tribunal preferíamos você em seu escritório de advocacia, para onde deverá voltar”. Nada mais verdadeiro. Há minis-tros, em um e outro governo, que são bons idiotas, ou trapaceiros, ou simplesmente ignorantes.
Certa vez que fui ao Rio encontrar-me com o Faoro – o Pertence, meu fiel amigo, me esperava no escritório do Victor Nunes Leal. Chegando lá, ele disse “Vamos lá no escritório do Sérgio Bermudes e do Doutor Dario de Almeida Magalhães, para uma reunião, eu quero que você esteja presente. Estavam prestes a começar a reunião o Doutor Teotonio Vilella, desassom-brado senador, o Rafael de Almeida Magalhães, o Victor, o Sérgio e mais dois advogados. Era para se discutir o projeto de anistia que o Dr. Teo-tônio Vilella estava elaborando junto com o Rafael. O Rafael é notável figura, lúcido, decente, mas trabalha quieto, empolgando-se com temas como este e tantos outros, sem aparecer. O Dr. Teotônio comunicou que recebera uma proposta de um afamado professor de direito de São Paulo, que eu não vou dizer o nome, segundo a qual só remanesceriam cinco pes-soas em prisão. O Dr. Teotônio, furioso, fez questão de rasgar o papel em pedacinhos.
Em seguida contou que o Presidente Figueiredo assegurava que a anistia tinha de ser recíproca porque se não fosse assim poderia haver revanche, que havia necessidade de apagar tudo isso. A única frase que eu disse na reunião foi nesse momento, que o problema nosso não era somente de anis-tia formal, mas sim de livrar os três mil presos das cadeias, a qualquer preço, para que eles pudessem voltar para a casa, para as suas famílias, para os seus trabalhos, para a liberdade. É mais que óbvio que os demais falaram muito mais do que isso. Claro que não havia como não aceitar a proposta. Era barato. Era pegar ou largar. Os presos adquiririam a li-berdade imediatamente dessa forma.
E assim foi feito: o Presidente Figueiredo mandou que o projeto com a reciprocidade fosse aprovado imediatamente e os presos saíram das cadei-as. Alguns juizes e delegados de má índole criaram alguns problemas, mas tudo foi enfim resolvido. O atual Ministro da Justiça, que finge não saber desse passado, e mais a sua troupe, que se recolham à sua insigni-ficância. Lei de Anistia não se revoga, ainda mais quando produziu seus plenos efeitos.
O engraçado disso foi a seqüência. Fomos todos ao Restaurante Lamas, já era tarde. Restamos os disponíveis, Rafael, Dr. Teotônio, Pertence e eu. Quando chegou ao fim, o Rafael, que nos havia convidado, botou a mão no bolso e disse não ter dinheiro. Assim também o Dr. Teotônio e o Perten-ce. Sobrou para mim, que tive de pagar a conta…
Contamos uma porção de histórias verdadeiras e que para mim foram vi-tais. Muitas delas ningué,m sabia. Teria outras. Comecei cedo com a dire-ção da campanha do petróleo no Paraná, em 1949, que chefiei pelo Centro Acadêmico e pela União Paranaense dos Estudantes. Nessa época convenci o Parigot de Souza a ser o Presidente e mais o General Cordeiro de Farias a ser o Presidente de Honra do Centro de Defesa do Petróleo. E continuo com intensa participação nas questões culturais e na Ordem dos Advoga-dos, o que faço com grande prazer. Mas o auditório deve estar cansado e precisamos ingressar na fase final das idéias.
A Ordem dos Advogados para mim foi e é muito importante, é uma extensão do meu trabalho, de minha casa. Não precisamos modificar os objetivos, mas sim manter os nossos conceitos, os nossos sentidos no plano da vida pública. Dos Conselhos profissionais, só a Ordem tem o dever de lutar pelo aperfeiçoamento das instituições, pela defesa das liberdades, dos direitos fundamentais do homem e da vida democrática do Brasil. A Ordem tem se comportado de modo incensurável.
De minha parte, sempre mantive a filosofia de que quanto menos governo tivermos, menos governo querendo controlar a gente, melhor para o povo e para o Brasil. Agora nós vemos que o Governo quer mandar em todos nós. Seremos assim favoráveis a uma doutrina anarquista? Acho que sim. Eu sou inteiramente vinculado a um anarquismo pragmático, civilizado, como de-finia Herbert Read. Anarquista no bom sentido, do que se pretende alivi-ar a carga de grandes estruturas governamentais, da arrogância, da petu-lância de gauleiters caboclos, que está provado nada fazem para melhorar a democracia. Essas estruturas são vias de exceções autocráticas, pres-tes às facilidades da corrupção desenfreada, que é a que se alastra atu-almente no País. Lord Acton, que considerávamos pragmático anarquista como nós, por isso dizia que o Poder tende a corromper e que o poder absoluto corrompe absolutamente.
Na Justiça, vemos infelizmente que há de parte de muitos a doutrina da facilitação em favor das estatais e dos governos contra os direitos in-dividuais, o que não acontecia no tempo da repressão. A Justiça era mais livre, por incrível que pareça. Como se explica que a Justiça, como um todo, não tenha manifestado decididamente a sua indignação contra a cen-sura à imprensa? Esta censura está se aperfeiçoando, na medida em que não se toma qualquer decisão contra ela, apesar das incisivas admoesta-ções dos advogados de partes, mais as da própria Ordem. E até mesmo de muitos juizes que se manifestaram abertamente contra a censura.
O Supremo Tribunal, em que se confiava ser a ultima ponte para a liber-dade, nos decepcionou a todos, com uma decisão protocolar, embalada pelo velho truque de preliminares e tecnicalidades duvidosas, fugindo à sua missão de assegurar as cláusulas pétreas das liberdades contidas na Constituição, que Pontes de Miranda chamava de direitos absolutos.
Esta questão é tão grave que serve de exemplo para as outras aberrações contra direitos individuais do cidadão cada vez mais freqüentes por par-te de autoridades e até alguns poucos juizes. Estes são pelo menos pou-cos, pois há juizes que salvam a Justiça – temos muitos no Paraná que são impecáveis. Que a ofensa a esses direitos fundamentais seja por go-vernantes atrabiliários, vá lá. Mas com a cumplicidade de segmentos do Poder Judiciário? É absolutamente inaceitável. Não poderemos nunca dei-xar de vigiar as tentativas que se fazem de justificar ofensas de qual-quer sorte aos direitos humanos, principalmente a liberdade.
A reação a esses abusos cabe a nós, à Ordem dos Advogados, como em ou-tros tempos de endurecimento, de agressão aos direitos do homem, que de pequenos totalitarismos podem se transformar em um grande sepultamento das liberdades. A Ordem não pode se deixar arrastar em questões varzea-nas, tomando repentinamente partido em favor de sujeitos duvidosos, en-ganada por falsas indignações. O papel da Ordem é mais alto, ostentando sempre a sua dignidade, o seu exemplo de decência.
Quero dizer algumas palavras que evidenciam uma atitude perante a vida. Embora possa não parecer, confesso que sou cheio de dúvidas e de contra-dições, como dizia Nelson Rodrigues. Por isso, tomo a liberdade, co,mo tendo passado por tantas e boas, de me confessar em permanente luta men-tal dentro de minhas perspectivas, de minhas pequenas realizações, de minhas emoções. Vamos em frente, cavalo não desce escada. Os cavalinhos correndo e nós cavalões comendo, como disse Manoel Bandeira.
“É preciso viver entre os vivos”, dizia Montaigne. É preciso conter-se em seus instintos para aliviar os sofrimentos dos outros, sabendo que o tempo tende a construir e a eliminar as tensões, atenuar as perplexida-des.
“Avalanche, veux-tu m’emporter dans ta chute?” Baudelaire disse. Avalan-che, quer me arrebatar em tua queda? Respondo que ainda não tenho tempo. Sou filho único, não posso ficar. Minha mãe está esperando, vou pegar o trem das onze. Vou para Maracangalha, eu vou. Tenho quatro filhos e qua-tro netos para cuidar. E mais a minha mulher, que cuida de mim.
A terra é quadrada e o sol gira em volta do mundo. Assistimos o sol se por fazendo noite e voltando fazendo dia na madrugada, dando a sua infa-tigável viagem pelo espaço redondo e infinito. Somos parte do espaço, eu sou parte do espaço, com o meu mundo dos vivos e o mundo de meus mortos que estão em meu pensamento. Meu pai Eduardo, minha mãe Aracy, minha sogra Mariazinha, meus amigos que já foram tantos, dos juristas Raymundo Faoro, Nireu Teixeira, Vieira Netto, Elio Narezi, Oscar e Edgard Virmond Arruda, o Edgard Cavalcanti de Albuquerque, meros exemplos, é uma multi-dão da boa lembrança.
Estão todos juntos comigo, esperando o mundo girando infinito. Eu sou gauche na vida, dizia o poeta Drummond, e eu me atribuo. Não sei como as pessoas chegam a me homenagear, o que é para mim uma sonhadora surpresa. É por causa da poesia que nos habita. A poesia é o autêntico real abso-luto, dizia Novalis. Sem a poesia, inerente a cada um de nós, por força da natureza, mesmo que não saibamos, sem ela seremos pequenos seres er-rantes, pífios sobreviventes do nada.
De Shakespeare :”A vida é apenas uma sombra que se move, um pobre ator que dá cabriolas e se agita durante uma hora, em cena, e de que se não torna a ouvir falar. A vida é um conto narrado por um idiota, um conto cheio de barulho e de fúrias, mas que significa nada”, isso disse Sha-kespeare, na boca do tirano Macbeth.
Não é possível pensar que o tirano pudesse ter razão.
É melhor estar enriquecido com a vida exuberante que nos é oferecida pela natureza, pelo convívio com os vivos e com os nossos mortos que povoam a nossa bela lembrança.
“É bom estar vivo” dizia um personagem de Aldous Huxley, tomando o chá das cinco. Vamos tomar o chá das cinco, o whisky das sete, o vinho das oito. Vamos em frente, vamos continuar a faina, a luta, para que trans-formemos o trabalho e o amor em prazer de todo dia.
Ao Presidente e aos advogados e a todos, os agradecimentos e os cumpri-mentos deste remanescente do mundo dos vivos.
Eduardo Rocha Virmond
Discurso pronunciado por ocasião da entrega da Medalha José Rodrigues Vieira Netto, pela Seção do Estado do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, e de seu diploma, em sessão solene de seu Conselho Pleno, presi-dida pelo seu Presidente Doutor Alberto de Paula Machado, ao advogado Eduardo Rocha Virmond, “em reconhecimento aos relevantes serviços pres-tados à causa da Justiça e do Direito e à sua classe”.
Curitiba, 11 de dezembro de 2009.