Contra o jogador de futebol Edinho foi decretada prisão cautelar. Por se tratar de prisão efetivada antes do trânsito em julgado final de sentença condenatória, não há dúvida que não se justifica qualquer rigor penitenciário. O artigo 300 do CPP (em 1940) dizia que, ?sempre que possível?, as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas. O regime jurídico do preso provisório evoluiu, posteriormente, com a Lei de Execução Penal de 1984 (art. 84), que estabeleceu a obrigatoriedade de separação entre ele e o preso definitivo.
A preocupação com a individualização da pena (e da sua execução) levou o legislador pátrio a conferir, a alguns presos provisórios, um outro benefício legal, que consiste na chamada ?prisão especial? (que hoje nada mais significa que ficar numa cela separada dos demais presos). Todas as pessoas nomeadas nos artigos 295 e 296 do CPP bem como em várias leis especiais (Lei 5.350/1967, por exemplo) contam com o direito de serem recolhidas a quartéis ou a prisão especial (como não existem ou não dispõem de vagas, tais pessoas são recolhidas a uma cela separada). Dentre elas acham-se ?os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República?. Noticiou-se que o jogador Edinho contaria com diploma de curso superior realizado no exterior. Eis a questão: como devemos interpretar a locução ?faculdade da República?? Abrangeria apenas as faculdades brasileiras ou também estrangeiras?
Pode-se discutir se é válida ou não a prisão especial, ou seja, se a distinção que é feita em relação a algumas pessoas tem procedência ou não, se é justificável ou não esse benefício legal etc. Tudo isso, claro, está subordinado a muitos questionamentos, que têm como premissa o princípio da igualdade (ou da isonomia). Afastando-nos momentaneamente dessa polêmica (que deve sempre ser estimulada), parece muito evidente que inexiste razão para privilegiar tão-somente os cursos de faculdades ?brasileiras?.
Em outras palavras, o texto legal acima mencionado não pode ser interpretado literalmente. Toda interpretação tem por fundamento múltiplos métodos (gramatical, histórico, contextual, sistemático, lógico, teleológico etc.). O motivo do tratamento diferenciado (na prisão especial) não reside em ser brasileira ou não a faculdade, sim, em contar o preso provisório com diploma de curso superior. É o seu diferenciado nível de instrução que vale, não o local da sua formação. Esse tratamento ?privilegiado?, que é dado aos ?diplomados?, repita-se, pode ser questionado. Mas enquanto existir no nosso país o direito à prisão especial, a mais adequada interpretação conforme a Constituição é a que amplia os direitos humanos fundamentais, não o contrário. Não fosse assim, um Doutor pela Universidade de Harvard (um PhD, por exemplo), sujeito à prisão provisória no Brasil, não teria direito à prisão especial. Essa conclusão seria absurda porque violaria o art. 5º da Constituição Federal, que não permite nenhuma distinção injustificada entre o estrangeiro e o brasileiro. Cabe ainda considerar que tanto a analogia como a interpretação extensiva são amplamente aceitas em processo penal (CPP, art. 3º). Vale ademais o registro da doutrina de Eduardo Espínola Filho (Código de processo penal brasileiro anotado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1960, p. 317), que dizia: ?A enumeração [do art. 295] não é limitativa, admitindo a equiparação de pessoas outras, por paridade de motivo?. Conclusão: comprovando-se a diplomação em qualquer faculdade superior, de qualquer país, não pode haver dúvida sobre o direito à prisão especial, que, por sinal, no nosso dilapidado sistema penitenciário, não significa de modo algum uma ?prisão cinco estrelas?. Como nunca foi construído nenhum estabelecimento penal especial no nosso país, quem conhece a realidade prisional sabe muito bem que os lugares reservados para a chamada ?prisão especial? não cumprem nem de longe as exigências mínimas de salubridade, comodidade, aeração, insolação, condicionamento térmico, aparelho sanitário, lavatório, dormitório etc.. Portanto, o direito a uma cela separada é o mínimo que se pode imaginar para o preso provisório. Isso é coerente (aliás, muito coerente) com a doutrina dos direitos humanos, com o respeito à dignidade da pessoa humana, que é presumida inocente até sentença final condenatória. Se a prisão especial não significa nada mais que uma espartana cela separada, nunca será o caso de se lutar pelo seu fim, sim, fazer com que todos os presos provisórios contem com esse direito. Não nos parece correto retirá-lo de quem tem, sim, fazer com que todos os presos provisórios possam dele desfrutar. Devemos sempre lutar para conferir aos que estão ?em baixo? os mesmos direitos dos que se acham ?em cima?, não o contrário.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª rede de ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br