Antes limitado à publicidade e às compras online, com estratégias como descontos na utilização de aplicativos, o varejo presencial começa a se utilizar de dados de clientes para personalizar experiências de compra e até mesmo preços. No Brasil, a primeira iniciativa de grande porte nesse sentido são os aplicativos de desconto lançados há cerca de dois meses pelo Grupo Pão de Açúcar, mas especialistas afirmam que a estratégia deve se popularizar em breve.
No caso do Pão de Açúcar, o grupo resolveu utilizar a base de dados de clientes dos programas de fidelidade para desenvolver promoções segmentadas. Na loja, com o aplicativo aberto, um cliente recebe desconto de 15% na fralda, outro no macarrão. Na superfície, é isso que está acontecendo. Na verdade, trata-se de uma nova forma de gerir estoque, organizar corredores e gerar renda para o supermercado. Na esteira do GPA, o grupo Condor, um dos maiores da Região Sul, e o Hortifruti, do Rio de Janeiro, lançaram programas semelhantes.
O primeiro passo é construir uma base de dados consistente, rastrear quando o cliente compra, o que compra, com qual frequência. Depois disso, usa-se inteligência artificial para estabelecer a curva de comportamento de cada um e prever o que cada pessoa deve comprar, quais suas prioridades, o que é desvio e o que é repetição.
“Se eu sei que a pessoa compra vinho e macarrão toda sexta, posso rentabilizar isso melhor oferecendo descontos ou sugerindo produtos de maior valor agregado ou complementares a essa compra. Uma sobremesa, um queijo, um serviço de entrega”, explica Ana Paula Tozzi, presidente da agência de consultoria de negócios AGR Consultores.
O objetivo é baratear o custo das promoções ao segmentar os descontos por público-alvo. Para o mercado, o desconto sai de graça uma vez que quem banca são os fornecedores. Se as redes já vendiam espaço nas prateleiras e anúncio nos panfletos, agora ganham um novo produto. Para os clientes, há algumas comodidades: sabendo que você compra ração de cachorro toda semana, o aplicativo pode te lembrar que nessa compra ela ficou faltando, por exemplo.
O lado negativo
Em contrapartida, o acesso aos dados ajuda os pontos de venda a manipularem melhor o cliente e a saberem qual, afinal, é o maior preço que você está disposto a pagar por determinado item, quais seus dias e horários mais vulneráveis a comprar mais e como rentabilizar sua preguiça e falta de tempo.
Ao usar o aplicativo, o supermercado tem ainda acesso à sua localização dentro da loja. O sistema funciona através de sensores posicionados nos corredores que indicam quanto tempo o cliente passa em cada prateleira. Assim, é possível saber quais produtos geram mais desejo, quais compras são feitas com mais critério e quais são automáticas.
Essa parte é feita por sensores dentro da loja e independe do cliente ter autorizado o uso de sua geolocalização. Caso ele tenha autorizado esse uso, o supermercado fica sabendo quando o cliente preferiu ir ao concorrente, quem costuma fazer compras em mais de um supermercado para pesquisar os preços e pode até usar seu tempo de deslocamento até a loja para decidir onde abrir novas filiais.
Para isso, no entanto, é preciso convencer os clientes não só a aderirem aos planos de fidelização e darem acesso a seus dados como a perambularem pela loja com o aplicativo aberto, estabelecendo um tipo de compra que é ao mesmo tempo presencial e virtual.
Uma das consequências desse novo uso da tecnologia pode ser o aumento da dificuldade de inserção de novas marcas, que precisarão vencer uma nova barreira de comportamento automatizado. “Como o uso de dados ajuda a fidelizar o cliente, é provável que as marcas novas tenham mais uma barreira para quebrar e que tenham que investir em promoções para chamar a atenção”, afirma Lyana Bittencourt, diretora executiva do Grupo Bittencourt, que fornece consultoria de inteligência para empresas do varejo.
Potencial no Brasil
A tecnologia para viabilizar esse tipo de operação já está disponível há alguns anos, mas sofreu um barateamento nos últimos dois anos. Especialistas preveem que ela se difunda no Brasil nos próximos cinco anos, acompanhando uma possível recuperação do varejo.
“As possibilidades são potencialmente infinitas. O segmento pet pode usar para avisar quando a vacina está para vencer, quando o cachorro chegou a uma idade em que precisaria de uma ração especial, quando deve estar faltando xampu ou comida, por exemplo. Já um laboratório de exames pode avisar a data do próximo check-up ou sugerir uma ida ao nutricionista, uma seguradora”, diz Tozzi.
Para Patrícia Cotti, diretora de conteúdo da Academia do Varejo, o uso de megadados (ou “big data”, no jargão do meio) reforça a necessidade de se manter uma política clara a respeito do uso que se fará das informações do consumidor. “O Brasil não tem legislação específica que regule a venda de dados. Isso é uma questão desde a época da venda de mailings, mas deve se acirrar agora”, prevê.
Já em relação à personalização dos preços que, na prática, pode instituir valores diversos para cada cliente, nenhum dos entrevistados vê problemas. “É opção do consumidor aderir ou não a esse tipo de programa, que na essência não difere tanto dos programas de fidelidade anteriores”, afirma o consultor de varejo Marco Quintarelli.