São Paulo – O futuro da Organização Mundial do Comércio (OMC) depois do fracasso de Cancún, onde se pretendia avançar na liberalização do comércio internacional e na eliminação dos subsídios agrícolas, depende, agora, da “compreensão e respeito dos limites de posição” de cada um dos atores desse processo.
A avaliação é do embaixador Rubens Ricupero, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). Ricupero, que participou da reunião ministerial em Cancún como representante do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, disse ainda que chegou o momento de buscar um equilíbrio entre os países que participam das negociações.
“É preciso que todo mundo entenda, agora, qual é o ?bottom line? (limite de posição) do outro. Isso será um ganho enorme, desde que, claro, os países não ignorem qual é o limite de posição do outro e saibam agir em função disso”, disse o secretário geral da Unctad, por telefone de Genebra, em entrevista à Agência Estado. Indagado sobre que equilíbrio era esse ao qual ele se referia, Ricupero foi incisivo na sua resposta: “Não é mais possível que determinados países ofereçam pouco na questão agrícola e praticamente obriguem os outros a participarem em negociações na área industrial e de serviços, por exemplo”. O embaixador acredita que, se a lição de Cancún for bem compreendida, a OMC conseguirá recuperar o terreno perdido e sobreviverá a mais esse fracasso, o quarto desde 1988. Caso contrário, alertou Ricupero, o futuro é incerto. “Se os países tiverem a postura de extrair lições de Cancún, a OMC poderá superar mais esse problema.”
Mas não são apenas os países ricos que receberam críticas do secretário-geral da Unctad. Os responsáveis por conduzir as negociações na OMC em Genebra também foram alvo de suas observações contundentes. “Esse pessoal tem de entender que não se pode mais redigir documentos que expressem apenas a opinião de alguns países (ricos) e ignorem totalmente as reivindicações dos outros”, disse Ricupero, ao se referir à proposta agrícola que os Estados Unidos e a União Européia fizeram poucos dias antes da reunião ministerial da OMC em Cancún e que foi adotada como minuta pelo conselho da organização. Certamente, acrescentou, isso irrita qualquer governante dos países que não participaram desse acerto. “Há limites para tudo.”
Indagado se os países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil, corriam o risco de ficar isolados de um eventual acordo comercial entre os países mais ricos ou fora dos negócios além da OMC, Ricupero respondeu “absolutamente” que não. “Não acredito nisso porque os que mais se beneficiam do livre comércio são as nações industrializadas. Se não fosse assim, eles não estariam atrás desses acordos regionais ou bilaterais”, afirmou o embaixador. Para ele, ficou mais do que claro que os subsídios à agricultura são os que estão impedindo a ampliação do comércio no planeta.
Por isso, disse o secretário-geral da Unctad, não se pode pensar em criar um sistema comercial que exclua a agricultura. “Precisaria surgir uma nova teoria econômica”, afirmou. Para ele, livre comércio quer dizer vantagens comparativas, razão pela qual a liberalização comercial é inviável sem a agricultura. “Isso acabaria com a globalização, que, por sua vez, quer dizer unificação de mercados.”
Sobre o futuro do G-22, Ricupero não só elogiou o Brasil como disse que o grupo venceu um teste importantíssimo ao se manter unido e coeso em Cancún. “Foi impressionante”, relatou. Para ele não há por que pensar que o grupo não sobreviverá. “Pode ser que haja algumas defecções, até porque nem todos têm interesses na liberalização agrícola. Mas isso não é importante, já que não vai alterar a postura do grupo.” Ricupero lembrou o caso da China, que fez concessões significativas para ingressar na OMC. “Acredito que, agora, não há desejo de fazer concessões adicionais, daí a presença desse país no G-22”, disse.
Ao ser lembrado que boa parte da comunidade internacional elogiou a postura do Brasil e a sua liderança no G-22, o embaixador não deixou por menos. “Os elogios são merecidos e, como diplomata, os estendo ao ministro Celso Amorim e ao embaixador Luís Felipe de Seixas Corrêa, que tiveram um desempenho excelente em todo esse processo”, disse. Seixas Corrêa é chefe da delegação brasileira na OMC, em Genebra.
O secretário-geral da Unctad contou que tanto o ministro quanto o embaixador mostraram um grande senso de “timing” quando a proposta norte-americana e européia fora apresentada poucos dias antes da reunião ministerial de Cancún. “O erro deles (norte-americanos e europeus) foi ter julgado a proposta suficiente e satisfatória. Mas a inteligência diplomática fez com que Seixas Corrêa e Amorim vissem brechas nesse documento, que, por si só, já era fraco demais”, lembrou Ricupero.
Segundo ele, foi aí que o Brasil costurou um entendimento com a Índia e, depois, com a China. “Ninguém lidera uma China ou uma Índia. Esses países entraram no grupo porque têm seus próprios interesses. Por isso, o G-22 não pode ser considerado apenas como uma união genérica”, afirmou o embaixador. Ele explicou ainda que o grupo fez uma proposta melhor e, embora fosse um reflexo do documento do conselho da OMC, tinha conteúdos diferentes.
Ricupero lembrou também que, em nenhum momento, o Brasil e os outros países do G-22 obstruíram as negociações em Cancún e muito menos se recusaram a liberalizar o comércio. “Pelo contrário, estavam mais do que de acordo com a razão de ser do sistema .” Ao comentar sobre um almoço que teve na quinta-feira com todos os embaixadores da União Européia em Genebra, que teriam elogiado a postura do Brasil por se dispor a negociar, o embaixador disse: “Quem adota uma postura agressiva e liberalizante ganha moral. Por isso, o País sai engrandecido desse episódio, e não digo isso por dizer, até porque já fui muito crítico no passado sobre as posturas que o Brasil adotava.”
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) informou na quinta-feira que o fracasso em Cancún trará um custo de no mínimo US$ 176 bilhões no intercâmbio de bens no planeta. A OCDE acredita que, em Cancúm, se perdeu uma oportunidade valiosíssima, já que a liberalização do comércio beneficiaria a todos, incluindo os países desenvolvidos, que, segundo essa organização, são os que mais ganham com esse processo. Para piorar, a estimativa que a OCDE fez é conservadora, já que as perdas poderão ser ainda maiores do que os US$ 176 bilhões.
