Foto: Ricardo Stuckert/PR |
Lula e Evo Morales na suíte do hotel: ?Estamos sendo vítimas?. |
Em um encontro de última hora, ontem, os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Bolívia, Evo Morales, selaram uma trégua no conflito bilateral desencadeado pela decisão de La Paz de nacionalizar o setor de gás. Na reunião no luxuoso hotel em que a delegação brasileira estava hospedada, em Viena, o presidente Morales preferiu culpar a imprensa e afirmou a Lula que não havia acusado a Petrobras, na manhã da última quinta-feira, de contrabandear e de sonegar impostos em seu país e de valer-se de contratos ilegais para atuar na Bolívia.
O presidente Lula, por sua vez, sob o pretexto de manter o diálogo aberto, fez de conta que não ouviu, na noite da mesma quinta-feira, a gravação das declarações de Morales.
?Estamos sendo vítimas de alguns meios de comunicação, que buscam confrontar-nos. Não vão conseguir?, afirmou o presidente boliviano, ao final do encontro. ?O companheiro Lula e eu temos enormes coincidências porque Lula vem da luta sindical e eu venho do setor indígena-camponês. Por isso, as coordenações seguirão avançando aceleradamente.?
?O que ele (Evo Morales) falou ontem e o que ele falou hoje são coisas absolutamente consistentes. Vamos deixar o ruído e nos concentrar na substância. O que vocês querem mais??, disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao apresentar seu relato conciliador dos resultados da reunião.
Lula recebeu Morales em sua suíte, cada um de um lado de uma escrivaninha. O brasileiro, em mangas de camisa. O boliviano com sua indefectível jaqueta de couro bordada com motivos andinos. O encontro, segundo Morales, foi ?ameno e cordial?. A seu lado, Amorim relatou que o ambiente foi ?descontraído?. A reunião foi concluída com um convite do líder boliviano para que Lula vá a La Paz. Morales visitará o Brasil, em ocasião ainda não agendada, e brincou, valendo-se do plural majestático: ?Temos muita vontade de jogar futebol com o presidente do Brasil?.
Apesar dos sinais de trégua e de mostrar-se otimista com a virada da ?página de mal-entendidos?, o ministro brasileiro de Relações Exteriores, Celso Amorim, esquivou-se de cravar que o episódio está ?superado?. Ambos os presidentes teriam concordado com a necessidade mútua de preservar as exportações do gás boliviano ao Brasil e com a obrigatoriedade de chegar a um acordo benéfico aos dois países.
Morales chegou a afirmar que esperava aumentar o fluxo de gás boliviano ao mercado brasileiro. Em um gesto de boa vontade, um de seus assessores adiantou que seria conveniente acelerar as negociações para que o acordo seja concluído antes do prazo de 180 dias definido pelo governo boliviano, que se esgotará em 1.º de outubro próximo.
?Eu não estou falando nada de superado ou de não superado?, disparou Amorim, mostrando irritação. ?Concluir o acordo antes do prazo seria melhor para abrir o caminho da cooperação desejado pelo governo brasileiro.?
Racionalidade
Escaldado, Amorim deixou clara suas ressalvas com relação ao encaminhamento dessa trégua e com as negociações da comissão bilateral, liderada pelos ministros de Minas e Energia do Brasil, Silas Rondeau, e de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Solíz.
No encontro entre os presidentes, não foram tocados detalhes sobre os preços do gás natural e as possíveis indenizações à Petrobras. Mas, uma vez mais, o chanceler afirmou que o Brasil depende do gás boliviano ?pelo menos hoje, como está?, em uma indicação de que o País deverá buscar outras fontes para o caso de essa importação tornar-se inviável.
Também afirmou que as negociações e a cooperação brasileira se darão ?com base nos documentos assinados?. O recado ao Brasil deixou implícito, segundo Amorim, o compromisso de que a Bolívia não tomará novamente atitudes unilaterais, como a quebra dos contratos da Petrobras, determinada pelo decreto que regulamentou a nacionalização do setor de gás e petróleo.
?Os preços devem ser definidos racionalmente e beneficiar o Brasil, beneficiar a Bolívia?, declarou o presidente boliviano. Amorim reforçou: ?Morales disse que (o preço do gás) será ?eqüitativo e racional?. O que é racional, para nós, é que seja compatível com os empreendimentos que se valem do gás como insumo?.
Chávez
Ao deixar o encontro com Lula, Morales espontaneamente demonstrou seu interesse de poupar o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, e de reforçar sua aliança com tal ?companheiro?. Chávez foi apontado como um instigador da crise Brasil-Bolívia pelo próprio governo brasileiro, por ter estimulado Morales a adotar termos mais radicais no decreto que nacionalizou o setor do gás e a promover a ocupação militar das plantas da Petrobras no país.
Valendo-se de uma tradicional argumentação dos caudilhos, Morales culpou novamente a imprensa pelas tentativas de colocá-lo em choque com seu companheiro Chávez. Mas assegurou que, como no caso de Lula, os meios de comunicação não terão sucesso. ?Quero reiterar que somos grandes aliados, como países, como presidentes, como governos e, nesse marco, nunca vão conseguir nos confrontar com o companheiro Chávez.?
Lula acha que foi ?muita fumaça e pouco fogo?
Viena, Áustria (AE) – Em tom cordial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu um puxão de orelha no presidente boliviano, Evo Morales, e nos outros líderes sul-americanos, que escancaram as suas desavenças na Cimeira de Viena. Lula evitou responder perguntas específicas sobre os ataques do seu colega boliviano à Petrobras e ao Brasil, preferindo amenizar as declarações, resumindo que tudo que aconteceu ?representou apenas que tinha muita fumaça e pouco fogo?.
Lula lembrou a Evo Morales que ?o Brasil precisa do gás do Bolívia e a Bolívia precisa vender o gás para o Brasil?. E avisou: ?Por isso, é preciso encontrar o ponto de equilíbrio justo para que o Brasil fique satisfeito e a Bolívia fique satisfeita. Eu acho que, tendo esta compreensão, nós não teremos problema nenhum no nosso continente?.
Segundo Lula, os dois presidentes compreenderam que ?a única chance que nós temos de nos desenvolver é ter paz na América Latina, ter paz na América do Sul?. Comentou ainda que ?sonha com isso?, que ?trabalha para isso? e que vai continuar acreditando nesse projeto.
O recado aos demais presidentes da região, que alimentam picuinhas entre si, veio quando Lula avisou: ?É preciso parar, na América Latina, de um presidente ficar culpando o outro pela pobreza do seu país. É preciso saber o que nós deixamos de fazer em algum momento da nossa história. E eu acho que se a gente pensar no século 21, a gente pode dar um salto de qualidade. Se a gente ficar remoendo o passado, não andaremos?.
A mensagem foi endereçada a pelo menos quatro de seus colegas do continente: Morales, Alejandro Toledo, do Peru, Tabaré Vasques, do Uruguai e, especialmente, ao seu companheiro Hugo Chávez.