Serviços como conta isenta de tarifa de manutenção, emissão de boletos e Pix para empresa sem custos, oferecidos hoje por fintechs para quem é MEI (Microempreendedor Individual), podem deixar de ser gratuitos caso uma proposta de mudança regulatória em estudo pelo Banco Central avance sem alterações.
A minuta de resolução, divulgada pelo BC em outubro de 2021 para consulta pública, estabelece o teto de 0,5% na tarifa de intercâmbio para transações realizadas com cartões pré-pagos (emitidos por fintechs). O projeto ganha contorno após o mesmo limite ter sido estipulado pela autarquia em 2018 em relação aos cartões de débito (emitidos por bancos).
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A nova proposta traz ainda a aplicação do limite máximo de 0,5% para todas as operações envolvendo cartões corporativos e compras não presenciais em ambos os arranjos. Sem exceções, o BC diz procurar “simplificar o acompanhamento do seu cumprimento e a própria ação de vigilância e de supervisão”.
A tarifa de intercâmbio é o percentual pago pelas credenciadoras de cartões aos emissores (instituições financeiras) e a faixa praticada hoje nas transações com cartões pré-pagos varia de 1,1% a 1,5%, em média.
Essa remuneração é uma das principais receitas das fintechs, de forma que uma redução significativa poderia inviabilizar o modelo de negócio de uma parcela das startups financeiras.
Proposta normativa ameaça empresa
Dentre elas, está a Cora, que atua como banco digital para PMEs (pequenas e médias empresas) desde 2020 e possui cerca de 500 mil clientes. De acordo com Mônica Leite, líder da área Legal e Compliance, a sustentabilidade da empresa estaria ameaçada caso a proposta normativa não seja modificada.
“Talvez a gente se veja diante de um trade off. Até que ponto conseguimos oferecer os mesmos serviços de forma gratuita se tiver uma redução considerável na receita que é representada pela tarifa de intercâmbio”, afirmou.
“A gente talvez tenha de rever as nossas estratégias e passar a cobrar por alguns serviços, isso pode ter um efeito de fuga [de clientes]”, complementou.
A crise causada pela pandemia de Covid-19 empurrou muitos brasileiros para o empreendedorismo e, desde então, o número de MEIs continua crescendo. A modalidade é responsável por 57,4% dos negócios ativos no Brasil, além de representar 79% das empresas abertas no primeiro quadrimestre deste ano.
Empresário individual, que conta com regime especial de tributação, está entre os consumidores que seriam afetados pelas novas regras.
De acordo com um levantamento realizado pela Zetta, organização que reúne fintechs como Nubank e Mercado Pago, os clientes das instituições financeiras associadas (mais de 90 milhões de contas) teriam deixado de economizar cerca de R$ 24 bilhões em tarifas, caso a nova regulação sobre a tarifa de intercâmbio estivesse em vigor no ano passado.
“Do ponto de vista da inclusão financeira, pelas nossas estimativas, nos próximos dois anos, 34 milhões de pessoas teriam que começar a pagar tarifas ou acabariam sendo excluídas do setor financeiro”, afirmou Bruno Magrani, presidente da Zetta.
Para chegar a esses números, o levantamento usou como premissa um teto de 0,6% para a tarifa de intercâmbio e tomou como base a revisão de literatura feita por Raphael Bruce, na época pesquisador associado do Insper.
Uma das evidências empíricas trazidas pelo autor jogou luz sobre o impacto da regulação da tarifa de intercâmbio praticada nos Estados Unidos, destacando como o resultado, diferentemente da intenção, pode ser negativo para consumidores e comerciantes.
Os pesquisadores observaram que o ajuste das taxas por parte dos bancos americanos, após a emenda Durbin, recaíram mais que proporcionalmente sobre os mais vulneráveis, levando à desbancarização.
“Tem consequências de segunda ordem que vão reverberando na economia e que são muito importantes e precisam ser levadas em conta”, afirmou Bruce à Folha de S.Paulo.
Segundo ele, o impacto sobre os microempreendedores é um tema a ser considerado no debate. “Ao regular a tarifa de intercâmbio, a instituição financeira vai tentar compensar essa perda de algum jeito, isso pode recair sobre a pessoa física por trás desse MEI, pode recair sobre contas tipo MEI. É incerto por onde vai ser a resposta da instituição financeira”.
Tal análise foi levada pela Zetta ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, em reunião no dia 2 de junho.
O BC tem mantido interlocução intensa com o mercado e recebeu diversos estudos complementares sobre o tema após o período de consulta pública, encerrado em novembro do ano passado. Na época, foram submetidas 23 contribuições de associações do setor, instituições emissoras de cartões, credenciadores e instituidores de arranjos.
“As áreas técnicas do BC continuam analisando as contribuições e trabalhando na proposta normativa, que será submetida, em breve, à diretoria colegiada”, disse a autarquia.
A minuta de resolução apresentada aos agentes do mercado ainda está em estudo e deve sofrer modificações em sua versão final.
Quando lançou a consulta pública, o BC disse que a proposta tinha o objetivo de “harmonizar regras, custos e procedimentos associados a instrumentos de pagamento que apresentam grande similaridade sob o ponto de vista do funcionamento do serviço de pagamento prestado, com o objetivo de trazer mais eficiência ao ecossistema de pagamentos, de forma alinhada com a Agenda BC# no pilar Competitividade.”
As fintechs defendem que, apesar do uso similar, os cartões de débito e pré-pagos são produtos distintos do ponto de vista técnico-jurídico.
“Os bancos podem usar os valores que estão em conta de depósito para emprestar esses recursos, enquanto que os valores que são depositados em uma conta de pagamento pré-paga não podem ser usados para fim de alavancagem”, disse Mônica Leite, da Cora.
A Febraban (Federação Brasileira de Bancos), por sua vez, entende que, ainda que os produtos não sejam tecnicamente similares, o consumidor não é capaz de distinguir as diferenças e apoia a nova resolução. “Se a natureza do serviço é a mesma, portanto, tem de ter regras iguais”, disse o diretor de Inovação e Serviços, Leandro Vilain.
Na avaliação da entidade, a proposta de estabelecer o mesmo limite percentual para tarifas de intercâmbio em transações de cartões de débito e pré-pagos trata-se de um avanço em termos de simetria regulatória, com um tratamento mais isonômico entre os agentes.
“O que a gente defende em primeira instância é que não tenha nenhum tipo de regulação de tarifa. Regulação de preço em qualquer setor é ruim para economia, cria distorções ao longo do tempo. Mas, uma vez que foi feita, que pelo menos essa regra tenha validade para todos os participantes que tenham serviços similares, afirmou Vilain.
Para a Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços), as necessidades de aperfeiçoamento que surgiram após o BC ter estipulado o teto de 0,5% na tarifa de intercâmbio para cartões de débito devem ser feitas pela iniciativa privada.
“Manifestamos ao Banco Central sermos contra qualquer tipo de tabelamento. Acreditamos em uma economia liberal, aberta e entendemos que o mercado tem condições de se ajustar. Se existe alguma imperfeição, o mercado tem de se autoajustar”, disse Ricardo de Barros Vieira, vice-presidente executivo.
“Sendo feita pelo mercado, a regulação tende a ser menos danosa para um ou outro participante, uma ou outra fintech, uma ou outra incumbente”, acrescentou.
Caso a regulamentação em estudo pelo BC seja aprovada, a Zetta pediu à autarquia que considere que a redução na tarifa de intercâmbio seja feita de forma escalonada para que as fintechs tenham tempo de adaptação.
“Os bancos tiveram somente seis meses para se adaptar quando houve a limitação no cartão de débito, a gente tem pedido prazos mais longos, de 12 a 24 meses. Quanto mais curto o período, maior o impacto”, disse Magrani.