Pagar as contas no final do mês. A tarefa, que é um desafio para a maioria das pessoas, é quase uma obsessão do executivo Ciro Possobom. À frente da Tesouraria da Renault para a América Latina, e como gerente geral de Finanças da planta brasileira da montadora, ele passou, nos últimos meses, por um desafio: manter em dia as contas da empresa durante a crise.

continua após a publicidade

Graças à vivência que teve, há alguns anos, na matriz da Renault, na França, o executivo percebeu a chegada da crise, antecipou os problemas e conseguiu deixar positivo o caixa da filial brasileira por esse período.

Por tudo isso, Possobom, que tem 37 anos e é nascido em Curitiba, foi eleito o executivo do ano no Estado, e deve receber, no início de novembro, o Troféu Equilibrista do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Paraná (Ibef-PR). Ele conversou esta semana com O Estado e revelou como ajudou a montadora a enfrentar a crise.

O Estado: O senhor foi escolhido como executivo do ano por ter antecipado a crise e minimizado seus efeitos na Renault do Brasil. Como foi essa antecipação?

continua após a publicidade

Ciro Possobom: Lá fora já havia alguns sinais de crise no final de 2007. O mercado financeiro começou a ficar diferente. No começo de 2008, começou a ter um pouco de restrição à liquidez.

Estando lá, e trabalhando numa empresa do tamanho de uma Renault, já se sentia esse tipo de movimento. Chegando ao Brasil, vi que tudo estava muito bom. O mercado estava otimista, tudo dava certo. Vendia-se bastante e as margens nunca foram tão boas.

continua após a publicidade

O mercado de automóveis dobrou em quatro anos. Não que isso seja ruim, mas tudo tem que ter uma consequência. E a gente não tinha uma estrutura de capital muito boa. Tudo dependia da matriz e a gente tinha um dinheiro em caixa relativamente pequeno.

Suficiente para as atividades do dia a dia, mas nunca se tivesse uma crise pesada, assim como muitas empresas. Então um diferencial que a gente teve na crise – e aí a razão do prêmio – é que fomos uma das poucas empresas que passaram incólumes.

OE: Como isso foi possível?

CP: Chegando aqui, trabalhei muito forte com o presidente da empresa e com o vice-presidente de Finanças, e os convenci a fazer uma operação de blindagem financeira, que nada mais é do que dinheiro em caixa. E conhecer e ser uma pessoa conhecida da matriz facilitou muito.

Eles confiaram e me deram uma boa autonomia para poder trabalhar. E a gente conseguiu fazer boas operações. A partir do primeiro semestre de 2008 fizemos alongamentos de dívidas, obtivemos recursos via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

E a Renault sempre foi uma empresa que trabalhou com poucos, mas bons bancos, então teve apoio muito forte de banqueiros aqui. Tinha também uma dívida relativamente forte com a matriz.

Como os negócios estavam indo muito bem no Brasil, a Renault estava com caixa bastante confortável. Isso permitiu que a gente tomasse algumas decisões, como de reembolso de dívidas com a matriz.

Quinze dias depois veio a crise e o real disparou. Aí chegaram as notícias de empresas quebrando, e no Brasil tiveram muitas com problemas, como não ter dinheiro para pagar as contas no final do mês.

A Renault não passou nem de perto por isso. Não chegou a pedir mais dinheiro para a matriz. A gente conseguiu se virar muito bem, e inclusive conseguiu ajudar mais gente, como outras filiais do grupo.

OE: A que nível chegaram os impactos no exterior, pelo menos no caso da Renault e das empresas que o senhor conseguiu acompanhar?

CP: De maneira geral, as montadoras americanas estavam com problemas há muito tempo. É notório, desde a década de 90 elas têm dificuldades. Além de problema de liquidez, tinham problema de rentabilidade. Já as montadoras europeias são rentáveis.

O que aconteceram foram problemas de liquidez. Se uma montadora muito grande, na qual um bem gira na base de R$ 30 mil, R$ 40 mil cada, deixa de vender 10 mil carros de um mês para outro, são R$ 300 ,milhões a R$ 400 milhões de impacto no capital de giro.

Numa montadora mundial, que tem centenas de milhares de carros, o impacto no caixa é bastante forte. As montadoras europeias tiveram dificuldade, mas estavam muito mais protegidas que as americanas.

OE: Continuam tendo até hoje, não?

CP: Continua e não vai voltar tão cedo. Uma retomada vai demorar pelo menos mais uns três anos, 2010 ainda vai ser um ano ruim. No Brasil, se fala que 2010 vai ser um bom ano, e 2009 já está sendo bom em termos de vendas.

OE: Na sua avaliação, isso aumenta a importância, na visão da matriz, de filiais como a do Brasil?

CP: Totalmente. O Brasil sempre foi o patinho feio. Passou por várias crises, moratórias, crise na Argentina, na Ásia, do real em 1999. Hoje não. O Brasil já se consolida como um País realmente forte, liderando essa retomada da crise.

Não é um ator chave no mundo, mas já é considerado um importante player no mercado. Tanto que várias subsidiárias, empresas mundiais, estão reforçando suas atividades aqui.

O peso relativo do País entre as filiais no mundo ficou muito mais importante que no passado. Foi a primeira vez que eu passo por crise em que a gente não é o patinho feio. Agora é lá fora que está ruim, aqui está bom. É lá que estão atrapalhando nossos negócios aqui, e não o contrário. E podemos ver similares em vários setores.

OE: As medidas do governo para enfrentar a crise foram suficientes? E vieram em boa hora?

CP: No momento da crise, o governo escutou a demanda do setor e agiu rápido. A medida do corte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), em dezembro, foi rápida e assertiva.

Essa comunicação do governo com os setores, não só para nós, mas com a linha branca, a construção civil, foi um ponto bastante positivo. Coisa que não se viu na América Latina, onde os governos foram muito tímidos na ajuda às empresas ou aos setores.

Outro ponto foi a força do nosso sistema bancário, principalmente dos bancos públicos, como o BNDES que fez um trabalho excepcional no início da crise , o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.

Além disso, bancos como o Bradesco, o Itaú, que são agora potências mundiais, dão um peso e um diferencial que não se vê em outro país. Não vou dizer que o jogo está ganho, mas a gente está muito melhor do que o que se vê lá fora.

OE: Com o IPI voltando ao normal, a Renault está preparada para uma possível queda nas vendas, ou não vê essa redução? Até quando o mercado deve continuar aquecido?

CP: Se acredita que deve ter uma pequena redução (nas vendas) porque o mercado nos últimos meses foi excelente. A preocupação que a gente tinha era de uma queda muito forte.

Sair de um mercado de 2,6 milhões de unidades, como foi em 2008, para 2 milhões, daria um impacto. Mas já estamos falando em 2009 de um mercado de 3 milhões de unidades.

OE: É possível ver um potencial para redução de impostos no País, ou vocês nem trabalham mais com essa possibilidade?

CP: Esperamos, sim, uma redução, é uma discussão forte com o governo. A tributação dos carros no Brasil é uma das maiores do mundo. Muito maior, por exemplo, que EUA, Europa e mesmo alguns países da América Latina.

Um carro que é vendido aqui por R$ 50, 60 mil, na Europa é vendido por R$ 40 mil. Boa parte é tributação. Então há esforço a ser feito no governo, como há esforço nas montadoras de reduzir custos para poder chegar a um carro a preço melhor ao consumidor.

OE: As negociações salariais com os metalúrgicos, que aconteceram em setembro, chegaram a alterar os planos da empresa ou foram encarados como normais?

CP: Não, não são normais. Uma empresa que parou 12 dias, sem produzir, não é normal. Isso impacta nos custos e na produção. Além disso, a gente deixa de vender carros no mercado. Isso é ruim para nós.

<,p>A gente está buscando a recuperação na produção até o final do ano. Não que mude a decisão estratégica da empresa, mas impacta no resultado, na dinâmica. O reajuste feito no setor automotivo é bastante elevado se considerar, por exemplo, a inflação.

Numa época em que estamos saindo de uma crise, ter esse tipo de correção é bastante impactante para uma empresa como a nossa, como foi para a Volkswagen e é para todo mundo.

OE: Como a matriz encara isso?

CP: É bastante ruim, porque não é toda filial do mundo que tem isso. No Brasil tem, e teve de novo (este ano). Praticamente todos os anos os sindicatos, de maneira geral, fecham. É clássico isso no País, e agora no Paraná também.

E a matriz não vê bem isso, quer saber qual é o problema do Brasil, porque isso está acontecendo. Isso, em um investimento, pode pesar negativamente para cá, por não passarmos uma boa imagem para fora.