Quando se fala em bovinos, logo vêm à mente os cortes que vão direto para a mesa: filé mignon, picanha, alcatra, coxão mole, acém, entre outras tantas variedades. Mas o aproveitamento de um boi não se restringe ao mero consumo de sua carne. O sebo se transforma em matéria-prima para a indústria de sabão e detergente; o pêlo da orelha é utilizado em pincéis; as tripas se transformam em embutidos. Até a veia aorta é usada pela medicina e nem os lábios do animal são desperdiçados. ?Há pelo menos cem itens no boi que podem ser aproveitados?, afirmou o engenheiro agrônomo da Federação da Agricultura no Estado do Paraná (Faep), Rubens Niederheitmann.
Só para consumo humano, lembrou Niederheitmann, são mais de 90 cortes possíveis. Além das partes traseira – mais nobre – e dianteira, é possível consumir ainda miúdos como rins, coração e fígado. Língua e miolo do cérebro também apetecem alguns paladares mais exóticos e, para quem aposta em pratos afrodisíacos, as opções são testículos e ulbres. O diafragma, o pulmão, o esôfago e o baço também podem ser preparados e servidos à mesa.
Fora da culinária, os aproveitamentos se multiplicam. De acordo com Niederheitmann, o sebo é utilizado na graxaria, na fabricação de sabão. Em fornos de alta pressão, é retirada a gordura líquida e está pronta a matéria-prima para o detergente. O couro é curtido com sal grosso e encaminhado para os curtumes, e até o sangue é usado na fabricação de ração animal. Os pêlos da orelha, lembrou Niederheitmann, são exportados para a China e se transformam em pincéis, enquanto as glândulas hormonais como a hipófise e a tireóide são utilizadas para fins medicinais. Também a medula espinhal é requisitada pelo mercado externo no setor de alimentos.
?O frigorífico, depois de pagar apenas pela carne, tira todos esses subprodutos?, apontou Niederheitmann. ?É uma fábrica de desmontagem.? Mas não é qualquer estabelecimento que está preparado para uma separação tão meticulosa. ?Os frigoríficos pequenos jogam tudo fora. Só os grandes, que abatem entre quinhentas e mil cabeças por dia, fazem esta separação?, afirmou. Além disso, o frigorífico precisa contar com funcionários treinados. ?Para você utilizar essas peças é preciso ter um pessoal especializado e um mercado comprador.? Segundo ele, quanto mais exótico o subproduto – caso da traquéia e dos lábios do boi -, maior a demanda pelo mercado externo. ?Há quem diga que o frigorífico ganhe mais na venda das iguarias do que da própria carne. Os frigoríficos, no entanto, não abrem esta planilha?, afirmou Niederheitmann.
100% de aproveitamento
?Conseguimos aproveitar 100% do boi. Não desperdiçamos nada?, afirmou o diretor de operações do Grupo Friboi, José Luiz Medeiros. Com 22 unidades no País e duas fazendas, o Friboi se destaca como o quarto maior frigorífico do mundo e o primeiro da América Latina em abate e processamento de carne bovina – são 12 mil cabeças abatidas por dia. ?Um frigorífico só consegue ter aproveitamento total se tiver estrutura de acordo com a inspeção federal.?
Engrossando a lista dos subprodutos do boi, Medeiros cita ainda a utilização do casco e chifre na fabricação de adubo – há quem utilize ainda o chifre na fabricação artesanal de pentes e pulseiras -, a crina na fabricação de pincéis, a bílis e a traquéia na indústria farmacêutica. Até o sangue fetal pode ser aproveitado na fabricação de soro para vacinas.
?O frigorífico é uma linha de desmontagem?, resumiu. ?Existem várias etapas: primeiro é retirado o couro, depois a carne, os miúdos. Há a recepção de cada um dos produtos e a análise pela inspeção federal.? Na Friboi, a desmontagem média é de 90 a 120 bois por hora.
Questionado se os subprodutos rendem mais do que a própria carne, Medeiros afirmou: ?Cada produto tem seu preço e a hora de negociar. Não levamos em consideração qual vale mais?. E arrematou: ?Procuramos sempre aproveitar 100% do abate?.
Brasil é grande exportador de gelatina
O couro do boi não tem a finalidade única de se tornar um belo par de sapatos ou um casaco para o inverno. Ele pode ser transformado também em gelatina. De acordo com o presidente da Gelita South América e vice-presidente da Associação dos Fabricantes de Gelatina da América do Sul, Paulo Reimann, o Brasil exporta 24 mil toneladas de gelatina por ano; é o maior exportador mundial do produto. ?O mundo inteiro produz cerca de 300 mil toneladas de gelatina, mas grande parte é para consumo próprio?, diz Reimann.
De acordo com o gerente de matéria-prima da Gelita, Luiz Antônio Lima Gonçalves, o couro do boi é vendido para o curtume, que retira toda a parte central – o ?filé mignon? do couro, que vai para a indústria automobilística (fabricação de bancos em couro), vestuário e materiais de segurança. Apenas os retalhos do couro não curtido é que irão se transformar em gelatina. ?O que a gente compra é praticamente o desperdício do produto?, afirmou Reimann. Segundo ele, um boi de tamanho médio pode gerar de 5kg a 8kg de gelatina.
Embora a gelatina esteja associada primeiramente à sobremesa, Reimann lembra que são os mercados farmacêutico e de linha diet que mais utilizam o produto. O mercado de cosméticos (especialmente xampus) também é importante. A própria Gelita – uma das quatro fabricantes de gelatina no Brasil e que tem uma unidade em Maringá – manda 80% da produção para o mercado externo. ?Não é por opção. É que o mercado externo de fato demanda mais?, explica. Por ano, a produção brasileira de gelatina movimenta cerca de US$ 100 milhões.