Em conversas privadas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro aos presidentes da Bolívia, Evo Morales, e da Venezuela, Hugo Chávez, que não gostou nem um pouco da atuação de ambos no episódio da nacionalização do gás boliviano.
Foi o que revelou ontem o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, durante reunião na Comissão de Relações Exteriores do Senado. As palavras duras ficaram restritas aos bastidores para evitar que, acuado, Morales "radicalizasse" nas negociações com a Petrobras ou se alinhasse de vez com Chávez.
Uma atitude mais "estridente" do Brasil também colocaria em risco o projeto de integração regional, que é caro ao governo. Amorim, porém, bateu duro na forma "adolescente" com que a Bolívia conduziu o processo de nacionalização, colocando tropas do Exército na frente das instalações da Petrobras. Ele classificou o ato de "desnecessário" e "espetaculoso" e afirmou que Morales agiu dessa forma por motivações eleitorais.
Durante as cinco horas em que ouviu duras críticas dos senadores à atuação do Brasil, o ministro mostrou que o episódio com a Bolívia vem sendo conduzido em dois níveis. No público, ficam as palavras amenas do governo brasileiro.
"A política brasileira nunca será do porrete, será sempre a da boa vizinhança", disse. Nos bastidores, a conversa é mais dura. "Foi transmitido a Chávez nosso desconforto e o desconforto pessoal do presidente Lula, de forma inequívoca, com as ações praticadas", relatou o ministro.
O presidente teria dito a Chávez que a presença de funcionários da estatal venezuelana de petróleo, a PDVSA, nas refinarias da Petrobras na Bolívia colocava em dúvida o projeto do megagasoduto que trará gás da Bolívia até a Argentina, passando pelo Brasil. Morales tampouco teria sido poupado. "O presidente Lula foi franco com o presidente Morales, falou tudo o que tinha de ser dito, expressou toda a nossa decepção."
Amorim adiantou ainda que as negociações que começarão hoje na Bolívia, sobre o novo preço do gás e a compensação que a Petrobras tem a receber pela nacionalização de seus ativos, serão longas e complicadas. "Não vai se resolver facilmente", adiantou. Primeiro, por causa do processo eleitoral na Bolívia, que escolhe em julho uma assembléia constituinte.
Segundo, pela "instabilidade estrutural" daquele país, que já teve quatro presidentes nos últimos três anos. Um deles, Carlos Mesa, caiu justamente por causa da regulamentação da Lei dos Hidrocarbonetos. A seguir, os principais pontos da reunião
Exército na Petrobras
No dia em que foi baixado o decreto regulamentando a Lei dos Hidrocarbonetos, a Bolívia colocou tropas do Exército na porta das instalações da Petrobras. O senador Jefferson Peres (PDT-AM) disse que o ato foi "inamistoso" e afirmou que proporá um voto de censura a Lula por não haver expressado o desagrado do Brasil. Amorim classificou o ato de adolescente, desnecessário e inconveniente.
"Não contribuiu em nada", afirmou. "Acho que foi um ato de consumo interno", disse Amorim, referindo-se às eleições na Bolívia. Essa observação teria sido feita por Lula a Morales. "As tropas não chegaram a entrar (na Petrobras), mas foi desnecessário", comentou.
Por que o Brasil não retaliou
"Se entrássemos numa escalada de retaliações e ameaças, despertaríamos ‘irracionalidades’ do outro lado", disse. No momento, avaliou Amorim, há um canal de negociações aberto. Descontando as "estridências" e "atitudes crispadas", não houve ainda nenhuma medida com "impacto insuperável" para o Brasil.
Ele acha que uma atitude mais dura até renderia dividendos políticos para Lula, mas não seria bom negócio. Supondo que fosse verdade que Morales tem sido manipulado por Chávez, o quadro se agravaria.
Chávez
Um dos pontos mais criticados pelos senadores foi a presença de Hugo Chávez na reunião de Puerto Iguazú, semana passada, onde a nacionalização foi discutida com a presença também do presidente argentino, Néstor Kirchner. Brasil e Argentina são compradores do gás boliviano. Os senadores questionaram o que Chávez fazia na reunião, se não era parte interessada. Eles desconfiam que o venezuelano estivesse influenciando Morales.
"A questão da Bolívia não pode ser analisada sem levar em conta a integração energética da região", disse Amorim, lembrando que Venezuela e Bolívia são donas das maiores reservas de gás do continente. Por isso, a presença de Chávez era necessária. Além disso, disse Amorim, a atuação do presidente venezuelano durante a cúpula foi positiva. "Ajudou o presidente Morales a ver que é de seu interesse um convívio racional", comentou.
Marco Aurélio Garcia – O assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais é apontado como um chanceler informal para assuntos latino-americanos e seu papel foi questionado pelos senadores. Segundo Amorim, o papel de Garcia não se confunde com o seu.
"Há coisas que o Marco Aurélio Garcia faz que eu não poderia fazer", disse. Um exemplo: contatos com políticos de oposição. Como chanceler, Amorim só poderia fazê-lo de forma muito discreta, para não melindrar o partido do governo Já Garcia tem mais liberdade para manter esses diálogos. Mas as atuações não divergem. "Somos ‘inintrigáveis’", afirmou o ministro.
Amorim negou que Garcia esteja comandando os entendimentos com a Bolívia. "Tanto é assim que o presidente Lula pediu que eu assumisse as negociações", disse. O presidente pediu ao ministro que vá à Bolívia o quanto antes. A viagem deverá ocorrer logo após a ida de Lula e Amorim a Viena, na reunião de cúpula América Latina-União Européia.
Nacionalização
A nacionalização do gás na Bolívia não pegou o governo de surpresa, porque é um processo que vem se arrastando há alguns anos e não algo surgido no governo Evo Morales. Houve um plebiscito em 2004, em que perto de 90% da população apoiou a nacionalização do gás. No ano passado, foi aprovada a Lei dos Hidrocarbonetos, que já previa a nacionalização. O que foi feito agora foi a regulamentação da lei.
"Qualquer presidente que fosse eleito na Bolívia teria dificuldades em não instaurar a lei", disse Amorim. O que surpreendeu, disse Amorim, foi a forma como a Bolívia implementou a lei. A Petrobras,durante o governo Lula, investiu US$ 100 milhões naquele país, quando precisaria investir perto de US$ 700 milhões ao ano. "Foi uma atitude de prudência", disse.
Justiça
O Brasil está disposto a negociar, mas não descarta recorrer aos tribunais internacionais para preservar seus direitos, disse Amorim. Se não houver acordo quanto à nacionalização dos ativos, a Petrobras está protegida por um acordo internacional.
Ela investiu na Bolívia por intermédio de sua subsidiária holandesa, porque a Holanda tem um acordo de proteção de investimentos. Já a questão do fornecimento poderá ser discutido no tribunal arbitral em Nova York, conforme previsto no contrato assinado em 1996.
Liderança do Brasil
"A liderança se exerce pela atitude", disse Amorim, diante das afirmações dos senadores que o País teria perdido a liderança da região para a Venezuela de Hugo Chávez. Amorim disse que o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, buscou aconselhar-se com Lula quando seu país entrou em crise. Ele mencionou, também, que recebeu telefonemas de representantes de vários países querendo saber se Lula iria a Viena.
"Alguns dirigentes acham que fica bem sair na foto com o presidente Lula", disse. "Outros disseram que seus presidentes só iriam se Lula fosse." Mesmo no episódio do gás, empresas afetadas como a British Gas e a Repsol estão se alinhando à posição brasileira. "A Petrobras vai liderar o processo", afirmou Amorim.
O chanceler até admitiu que o Brasil errou ao disputar, simultaneamente, as presidências da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) Foi derrotado nas duas disputas. "É natural num processo eleitoral", disse Amorim. A atitude brasileira foi mal vista por alguns países, concordou. "Mas, sabedoria a posteriori não adianta nada", comentou.
Desintegração da América do Sul
"Não controlamos a realidade" disse Amorim a respeito do quadro tenso em vários países da região. "Há inquietação na América do Sul e temos de trabalhar pelo diálogo". Na sua avaliação, a eleição de Evo Morales foi boa para a Bolívia. "É algo que não está sob nosso controle", disse. Tampouco dependeu do Brasil a eleição de Hugo Chávez na Venezuela ou a possível vitória de Álvaro Uribe nas eleições da Colômbia.
Ele lembrou que o Brasil atuou dentro de seus limites quando surgiu uma ameaça de conflito entre Colômbia e Venezuela. "Há suscetibilidades que precisam ser respeitadas", disse. A relação do Brasil com a Argentina, por sua vez, está boa como não se via desde o governo José Sarney, assegurou.
Integração da América do Sul
"Não queremos que se crie um eixo Venezuela-Bolívia. O único eixo que faz sentido é um que uma toda a América do Sul. Mas, para isso, é preciso manter o diálogo."
Uruguai
O Uruguai não poderá ficar no Mercosul se fizer um acordo com os Estados Unidos, disse Amorim. Mas ele reconheceu que o Brasil errou ao não dar mais assistência aos sócios menores do bloco (Paraguai e Uruguai). Pelo contrário, nos últimos anos o País cortou pela metade, de US$ 1 bilhão para US$ 500 milhões, suas importações de produtos uruguaios.
"Eu, se fosse uruguaio, também estaria desiludido com o Mercosul", disse Amorim. Ele defendeu que sejam tomadas atitudes mais "generosas" com os dois países. Por exemplo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiar a implantação de empresas no Uruguai. Ou o Brasil ter uma política de compras governamentais que favoreça os sócios menores. "O Paraguai não vai fornecer uma plataforma de petróleo para nós, mas pode vender uma manivela", disse.
Amorim acha, porém, que há um entrave cultural. Iniciativas desse tipo esbarram em posições nacionalistas ou setoriais na burocracia. Uma política mais atenta teria amenizado em muito a crise que hoje envolve o Uruguai e a Argentina, em torno da implementação de uma planta de celulose na fronteira entre os dois países.
Fantasmas
O senador Jefferson Peres (PDT-AM) alertou que, diante da reação tíbia do Brasil, o presidente Evo Morales, pode se sentir inspirado a retomar o território do Acre (que já pertenceu à Bolívia) e ainda ser brindado com a abertura das negociações pelo Brasil. Na mesma linha, o senador Agripino Maia (PFL-RN) disse que há risco de o Paraguai decidir tomar a usina de Itaipu.
Entre irônico e preocupado, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) pediu a seus colegas que não levantassem tais temas. "Estão fazendo cada proposta, uma pior que a outra", comentou. Para Amorim, essas avaliações são um pouco exageradas e "figuras de retórica".
Mundo perigoso
Amorim alertou aos senadores que episódios como o da Bolívia poderão se repetir, porque empresas brasileiras estão investindo no exterior e nem sempre em países politicamente estáveis. Ele citou como exemplo a Vale do Rio Doce, que tem planos para países na África.
Tomando emprestadas palavras do presidente da Vale, Roger Agnelli, Amorim afirmou: "petróleo, não tem na torre Eiffel. Manganês, não se acha na Quinta Avenida", disse. "Precisamos nos preparar."
Terras
Amorim disse ainda que o governo brasileiro está fazendo "o que é possível" para defender os interesses dos agricultores brasileiros. "Se será suficiente, não sabemos", comentou. Ele disse que já estão sendo travados diálogos com representantes do governo boliviano a respeito.
Na sua avaliação as indicações dadas pela Bolívia até o momento indicam que brasileiros não serão prejudicados, porque a intenção é desapropriar terras improdutivas – o que não é o caso das fazendas de soja em questão.