A criança que não tem um atendimento médico-hospitalar pode, no contato com o Conselho Tutelar, imediatamente ser encaminhada a esse atendimento médico-hospitalar. Nesse caso não há conflito negativo de interesse e a satisfação não justifica a ida à justiça da Infância e da Juventude.
O Poder Judiciário atua quando há conflito de interesse, com determinado interesse resistido por parte daquele que, em tese, teria o dever de realizar aquele interesse e daí o Poder Judiciário tem que intervir para dizer com quem está o direito. A idéia da existência do Conselho Tutelar é essa resposta célere e imediata àquelas questões que, via de regra, têm um conteúdo meramente social e nem jurídico para resolver celeremente, imediatamente, aquele risco pessoal, familiar ou social de uma criança ou de um adolescente. Identificada aquela situação de violação de direitos o Conselho Tutelar estabelece uma medida e requisita o serviço público para cumprimento daquela medida que ele estabeleceu. Requisita, não está dito lá no Estatuto, que o Conselho Tutelar para a execução das medidas que estabelece pode requisitar os serviços públicos de saúde, educação, segurança, previdência. Isso não está lá por acaso. Quando se estabeleceu como requisito a possibilidade de requisição, isso significa que o Conselho Tutelar não pode deixar de agir, pois é da natureza das coisas se aceitar essa situação. Em relação às creches, por exemplo, se nós abrirmos o Estatuto, em relação ao sistema educacional como um todo, isso diz respeito ao atendimento a todos os direitos. O legislador do Estatuto diz, por exemplo, que em relação ao sistema educacional a falta de oferta ou a oferta irregular constitui responsabilidade do administrador.
A responsabilidade
O administrador pode ser responsabilizado juridicamente em razão desta falta de oferta ou de oferta irregular, só que nós estamos tratando isso como se fosse normal. Daqui a quantos anos? Daqui a 100 anos, talvez a gente possa encontrar uma maneira de resolver. Vamos fazer um prognóstico para que daqui a 100 anos a gente possa resolver uma situação que é emergente. A última observação que eu quero fazer é falar de algo também decorrente desses anos todos de atuação na área da infância e da juventude. Eu até quando a Associação de Juízes e Promotores da Infância e da Juventude fez lá uma galeria com retrato dos presidentes, pediram que eu colocasse uma frase junto ao meu quadro e eu coloquei que “a luta pela Infância e pela Juventude vale uma existência”. Eu acho que a Terezinha, sem dúvida alguma, pensa dessa forma e o Ruy, também. Nós temos inúmeras pessoas que pensam exatamente isso, que a luta pela Infância e pela Juventude vale uma existência. Eu estou há tempo nessa luta e cada vez mais revitalizado por encontrar pessoas como vocês, que estão aqui e que vão sair daqui com estratégias para poder interferir na sua comunidade e as estratégias são múltiplas. Fico pensando, às vezes.
Outro dia eu estava participando de uma reunião com juízes e promotores e perguntei: quantos de vocês sabem qual é o índice de mortalidade infantil na sua comarca? E quais são as causas da mortalidade infantil? Que tipo de doença, às vezes doenças facilmente evitáveis! Então nós temos desde aquilo que é mais elementar para interferir que é, por exemplo, o direito à vida, até essas questões relativas a creche, pré-escola. Nós temos um mundo extraordinário de intervenções para fazer na área da Infância e da Juventude. Nós não temos ainda os programas oficiais de auxílio às famílias carentes. Quantas questões seriam solucionadas com apoio familiar, não só com o apoio econômico, que é necessário, porque como eu disse nós vivemos num país das famílias empobrecidas e despossuídas em favor da concentração de riquezas nas mãos de grupos minoritários, que se beneficiam da estrutura social injusta estabelecida no país? O apoio econômico, mas também o apoio de outra ordem, de orientação. Esse trabalho que a Terezinha vem desenvolvendo no Estado todo, de atendimento à família. Ela diz uma coisa muito certa, que as nossas relações com os nossos filhos são extremamente difíceis porque nós estudamos para fazer vestibular, nós estudamos para entrar no Ministério Público, na Magistratura, enfim, no concurso que nós fizemos, nós fizemos cursinho de noivo para casar, mas nós nunca fizemos um curso para ser pai. Que informação nós temos para saber como é que se relaciona com o seu filho a partir dos seus primeiros meses de vida, aliás, na vida intra-uterina? Que informação nós temos? Daí nós estávamos fazendo o debate e telefona uma pessoa e diz “o melhor caminho para a educação dos filhos está na Bíblia, que fala lá da vara não sei das quantas” e eu disse que da Bíblia prefiro aquela parte que fala “vinde a mim as criancinhas”, de ter um pensamento cristão, de solidariedade, de fraternidade. Mas esse sujeito, por certo deve ter ouvido isso do pai dele, quer ouvir do seu pai.
Quer dizer, o que ele aprendeu em termos de relacionamento interfamiliar, do relacionamento dele com seus filhos? O que ele vai reproduzir para os seus filhos? Isso! Enfim, o que eu quero dizer mesmo é que nós sempre tivemos uma bandeira que deve continuar desfraldada, que é fundamental, de que lugar de criança é na escola. De que lugar de criança não é na prostituição. De que lugar de criança não é no trabalho precoce. De que lugar de criança não é na rua esmolando, cheirando cola, praticando furtos. Lugar de criança é na escola porque só através da escola é que nós vamos igualizar as oportunidades de todas as crianças e adolescentes. De todas as crianças e adolescentes de se inserirem no mercado de trabalho, de se realizarem pessoalmente e mais, é só através da escola é que se prepara o ser humano para o futuro exercício da cidadania. Isso está expresso no texto constitucional. O sistema educacional, enquanto espaço de desenvolvimento adequado para as crianças e adolescentes, de capacitação para o trabalho e de preparo para o futuro exercício da cidadania.
Mudança da realidade
O que é de fundamental no sistema educacional é exatamente porque através dele é que se pode alterar a realidade brasileira, o estado de coisas brasileiro, essa opção que se faz, entra governo, sai governo, pelos interesses dos grupos econômicos, pelos interesses dos grupos hegemônicos da sociedade. Não há dúvida de que lugar de criança é na escola. Mas eu digo hoje, depois desses anos todos de experiência, de que lugar de criança é também nos orçamentos públicos. De que a melhor das políticas traçadas pelo Conselho de Direitos, de que por mais que haja o envolvimento dos juízes, dos promotores, dos técnicos, dos advogados, da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem uma comissão específica tratando também dos direitos das crianças e adolescentes, por mais que haja envolvimento de todos, a política traçada vira em nada, vira em letra morta se não houver a destinação dos recursos necessários para a consecução da política traçada. Hoje eu tenho claro que não basta o discurso retórico a favor da Infância e da Juventude, de que não basta no período pré-eleitoral estar com a criancinha no colo, nas creches, porque é necessário efetivamente canalizar os recursos necessários para a implementação dos programas de ações diagnosticadas pelo Conselho Tutelar. Há uma regra específica no Estatuto da Criança e do Adolescente dizendo que o Conselho Tutelar deve intervir no momento da elaboração do orçamento.
É óbvio que o Conselho de Direitos, enquanto formulador da política de atendimento à Infância e à Juventude deve intervir no momento da elaboração das leis orçamentárias. Eu quero insistir nesse aspecto. Há necessidade de acompanhamento das leis orçamentárias, desde o plano plurianual até a lei de diretrizes orçamentárias, ao orçamento e mais que isso, acompanhar a execução do orçamento porque às vezes se prevêem recursos para a área da Infância e da Juventude e não se executam esses recursos. A nossa mobilização agora, fundamental no sentido de acompanhar a elaboração das leis orçamentárias, e quando eu digo acompanhar, é acompanhar desde o Executivo. Nós temos sempre corrido atrás das leis orçamentárias, nós temos ido atrás da Câmara de Vereadores quando já foi enviada a lei orçamentária para lá e, de regra, infelizmente o nosso Legislativo ainda é atrelado ao Executivo. Vem lá com um carimbo de imutável o orçamento e pronto! Então deve-se a participação no momento da elaboração das leis orçamentárias. No momento em que o Executivo está discutindo que orçamento ele vai estabelecer, há a necessidade da nossa intervenção. E nós vamos intervir para o cumprimento de um comando constitucional, nós não vamos lá pedir favor nenhum! Nós vamos exigir o cumprimento da regra constitucional que prevê prioridade absoluta para a Infância e da Juventude, que significa não só preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas relacionadas à área da Infância e a Juventude, mas principalmente destinação privilegiada de recursos à área da Infância e da Juventude. Nós temos que pegar os orçamentos dos nossos municípios do Estado, da União, fazer um levantamento de quanto se destinava para a área da Infância e da Juventude antes da Constituição de 1988, antes do comando da prioridade absoluta e quanto que se destina depois para ver se está havendo o cumprimento da regra constitucional. E mais que isso! Nós temos que comparar as rubricas do orçamento em relação às demais políticas públicas, quanto que se destina de recursos para uma política pública que não é prioritária e quanto que se destina para a área da Infância e da Juventude, que é prioridade absoluta. Acho que com essa intervenção, com a discussão dos orçamentos nos fóruns de defesa dos direitos das criança e do adolescente, com o comparecimento de técnicos da área de finanças públicas é que nós vamos também intervir no sentido de que se altere a qualidade social brasileira.
Digo que o que continua me animando é exatamente isso, é encontrá-los aqui, é continuarmos juntos nessa perspectiva de que cada um dos senhores, através da Infância e da Juventude se constitui instrumento à disposição da nação brasileira, à disposição da sociedade paranaense para que aqui, inclusive, antes que nos demais estados, se possa alcançar o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que é o de ver instalada uma sociedade livre, justa e solidária.
Olympio de Sá Souto Maior Neto é procurador de Justiça, membro da Comissão Técnica e Científica da Associação de Magistrados Promotores de Justiça da Infância, Juventude e Família do Paraná e coordenador estadual da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude.