ECA, a intervenção na tragédia (III)

Passou-se, através de um raciocínio absolutamente perverso, a querer responsabilizar as famílias pela situação de marginalidade experimentada por ela própria, a família, e pelos seus filhos. O raciocínio perverso de querer responsabilizar os marginalizados pela própria marginalidade. Você só não promove socialmente como ainda pune, como se tivesse havido por parte das crianças e adolescentes e de seus familiares a opção voluntária por viver à margem dos benefícios produzidos pela sociedade. Daí as instituições do pátrio poder baseado tão só na falta ou carência de recursos materiais. O Paraná teve, felizmente, inúmeras contribuições, já me arrepiei até em falar nisso, mas foi mencionado a Comissão Estadual sobre o Menor em Situação Irregular, cujo nome é horrível. Mas que é o embrião dos Conselhos de Direito, uma experiência do Paraná que começou inicialmente só com representantes de órgãos públicos e na seqüência abriu espaço para a participação da sociedade civil e que cuja política traçada foi adotada, então, pela Secretaria de Ação Social.

Na época era então secretário o deputado Rubens Bueno, que disse que a política do Paraná na área da Infância e da Juventude é a política traçada pela Comissão Estadual sobre o Menor em Situação Irregular, que é o embrião dos Conselhos de Direito. Mas acho que a melhor das contribuições do Estado do Paraná foi exatamente de fazer inserir no Estatuto uma regra geral no sentido de que toda a criança e adolescente tem o direito de ser criado e educado no seio de sua família de origem e daí a característica de expcionalidade da colocação em família substituta. E mais do que isso, expressamente essa contribuição do Paraná no sentido de que na falta ou carência de recursos materiais não pode por si só justificar a destituição do pátrio poder, que nessas hipóteses as crianças e adolescentes devem ser mantidas na sua família de origem e a família encaminhada a programas oficiais ao filho. Isso significou uma revolução nesse aspecto de que, ao invés de sair a busca de famílias substitutas, o que se tem a fazer é promover socialmente a criança e a sua família.

Voltando a esse raciocínio, não há dúvidas de que houve avanços, de que o Estatuto por si só produziu avanços extraordinários a partir da intervenção desse chamado sistema de garantias em relação aos direitos das crianças e adolescentes. Pena que nós vivemos num país que é campeão mundial das desigualdades sociais, que é um país que possui a mais alta taxa de conservação de riqueza nas mãos de poucas pessoas, um país que tem cerca de trinta e tantos milhões de pessoas vivendo em situação de indigência, vivendo abaixo da linha de pobreza. Se nós vivêssemos num país com justiça social mínima, com a intervenção dos conselhos de direito, dos conselhos tutelares da própria justiça, nós teríamos dado uma outra feição para a nossa Infância e Juventude, mas infelizmente a nossa tarefa não é de garantir os direitos das crianças e adolescentes lá da França, da Suíça, nós estamos reunidos aqui e temos essa tarefa extremamente difícil que é garantir os direitos da criança e do adolescente neste país, estabelecido a partir de estruturas sociais absolutamente injustas e essa interferência da lei no rompimento da injustiça das estruturas sociais, é fazer da justiça, é fazer do espaço do conselho de direito, é fazer do espaço do conselho tutelar, espaços de luta contra a injustiça social e aí a dificuldade. Eu, tempos atrás, e talvez esteja precipitado e nem devesse falar nisso, mas eu vivo na angústia do já, do urgente. Há tempos eu reclamava dos ex-sociólogos de esquerda submetidos aos interesses, às injunções econômicas internacionais. Eu juro que a coisa que eu menos quero chegar um dia a falar e me referir é a um ex-metalúrgico de esquerda submetido a essas mesmas injunções. Nós estamos com todas as esperanças direcionadas a esse sentido de que se possa mudar as estruturas.

No momento em que se possam mudar as estruturas injustas estabelecidas no país, no momento em que se garantir pleno emprego, que se garantir salário justo, que se garantir renda mínima às famílias, nós teremos por certo outra Infância e outra Juventude. Nós teremos outra condição de atender a esses direitos fundamentais da Infância e da Juventude. Mas o que eu quero dizer, então, é que não obstante esses avanços há muito o que se fazer e há muito o que se fazer já, que não se pode esperar. E aí, então, eu começo falando do sistema de justiça da Infância e da Juventude. A crítica maior, sem dúvida, tem que ser no sentido da inexistência da Defensoria Pública. Nós temos previsão constitucional da criação da Defensoria Pública para que todas as crianças, adolescentes e seus familiares possam exercer os seus direitos individuais previstos no ordenamento jurídico. É necessário a todo momento reafirmar a necessidade da organização da Defensoria Pública conforme previsão constitucional. Eu me lembro da época do Código de Menores que havia uma regra dizendo que a defesa das crianças e adolescentes era facultativa. O que significava ter defesa facultativa? Que os pobres não tinham defesa alguma e que os ricos teriam, através de profissional habilitado tecnicamente no exercício da ampla defesa, que é preceito constitucional. Ainda isso ocorre. Ainda nós vemos aí, eu principalmente que atuo na área de ato infracional, na área recursal de ato infracional. Ainda nós estamos vendo a defesa de adolescentes feita por defensores dativos que prestam um favor ao juízo, porque não são obrigados àquela atuação, e muitas vezes, infelizmente, uma defesa de péssima categoria. Muitas vezes no caso concreto correspondendo, na verdade, a situação de estar o adolescente indefeso, sem defesa. Quando as pessoas dizem que têm casos de adolescentes cumprindo casos de internação por prática de ato infracional que não atende ao princípio constitucional da excepcionalidade, isso na prática significa falta de defesa eficaz, adequada.

O Rui Mugiatti falou corretamente que não é possível a aplicação daquela internação, sanção por descumprimento reiterado e injustificado da medida anteriormente imposta, que não é possível a aplicação dessa medida sem prévia audiência do adolescente, sem oportunidade de contraditório ao adolescente. É óbvio, ululante porque se diz que tem que ser reiterado e tem que ser injustificado o descumprimento, é evidente que tem que dar oportunidade ao adolescente para ele dizer “eu tenho justificativa”. Se você não dá essa oportunidade como é que você vai concluir que o descumprimento é injustificado? Quantos adolescentes são encaminhados exatamente nessa perspectiva? Descumpriu a medida, sem a oportunidade de defesa, de contraditório e são encaminhados. Isso significa falta de defesa. Esse é um aspecto. Em relação ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, em primeiro lugar, eu quero dizer que o Código de Menores, embora desse ao juiz a aparência de todo-poderoso e isso se impregnou na sociedade de tal forma que as pessoas até hoje são capazes de dizer “eu estou com um problema relativo ao meu filho, vou entregar o meu filho ao juiz”, porque achava que o juiz poderia resolver tudo e na verdade não poderia resolver nada porque sequer ele podia exigir do Estado o atendimento do caso concreto e quem tem que atender é o Estado executivo e não o juiz. O juiz julga. Não é ele que executa as medidas. Embora essa visão equivocada de que o juiz de menores podia tudo, eu quero dizer que o juiz da Infância e da Juventude teve a sua competência elevada em dignidade pelo legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Hoje o juiz da infância pode muito, pode decidir sobre as coisas mais significativas, mais relevantes para a Infância e Juventude, desde a determinação de fazer por parte do município, do Estado, no sentido da construção de creches, de postos de saúde, de programas para drogadição, de programas para a inicialização profissional, tudo isso pode ser decisão da justiça da Infância e da Juventude. São interesses coletivos e difusos, e às vezes individuais que o Estatuto prevê através da chamada ação civil pública a possibilidade de se exigir em juízo o cumprimento dessa previsão legal. Eu quero até criticar menos os juízes nesse aspecto porque eu acho que está faltando mesmo é provocação para que os juízes decidam sobre isso. Todos nós sabemos que os juízes não deliberam sem ser provocados. Um dos princípios da jurisdição é a chamada inércia. O juiz tem que ficar aguardando ser provocado, pois ele não pode sair na rua e dizer assim “ah, essa criança está fora da creche, peraí que eu vou fazer uma sentença”. Não é assim que funciona. O juiz não pode ir numa favela e dizer “ah, aqui não tem um posto de saúde, peraí que eu vou fazer uma sentença, determinando isso”. O juiz diante da postura de imparcialidade e de inércia tem que ser provocado por alguém e por isso que ainda eu digo que a culpa menor seja do juiz porque o que nós temos aí são inúmeros casos concretos.

Olympio de Sá Sotto Maior Neto

é procurador de Justiça, membro da Comissão Técnica e Científica da Associação de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância, Juventude e Família do Estado do Paraná e coordenador estadual da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude.

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